João Moreira Soares Magalhães

 

João Moreira S. Magalhães. Foto: Acervo particular

 

 

Em dezembro de 1943 criou-se, na cidade de Bambuí, Minas Gerais, o Centro de Estudos e Profilaxia da Moléstia de Chagas (CEPMC), pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC). O Centro tinha como finalidade realizar pesquisas sobre a doença de Chagas na região, promovendo também ações de profilaxia e atendimento aos pacientes portadores do agravo. O primeiro diretor do instituto foi o médico Emmanuel Dias, que após seu falecimento foi sucedido pelo filho, o também médico e cientista João Carlos Pinto Dias. Nos seus mais de 80 anos de existência, o Centro (rebatizado em 1979 como Posto Avançado de Pesquisas Emmanuel Dias), promoveu inúmeras pesquisas e ações públicas para o combate e a compreensão da doença de Chagas, bem como para o tratamento de milhares de pessoas da região. [1]

 

O médico João Moreira Soares Magalhães é personalidade destacada dessa longa história. Natural de Belo Horizonte, graduou-se pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais em 1972, e logo mudou-se para a cidade de Bambuí, onde residia a família. Seu pai, o também médico João Moreira Magalhães, foi vereador, vice-prefeito e prefeito (1963-1967) do município, atuando como diretor do Hospital Nossa Senhora do Brasil. Também clinicava no antigo Sanatório São Francisco de Assis, que atendia pacientes com hanseníase, e sua atuação na colônia “foi fundamental para as internas e os internos enfrentarem o forte preconceito dos moradores da cidade”.[2] Seguindo os passos do pai, o jovem João Moreira Soares Magalhães começou a clinicar no hospital e também no antigo Sanatório.

 

O comprometimento do profissional chegou ao conhecimento do médico Genard Nóbrega, do IOC, que convidou João Magalhães para assumir a função de clínico geral no Posto de Bambuí.[3] Naquele momento o cargo encontrava-se vago, pois João Carlos Pinto Dias mudou-se para São Paulo, para atuar em hospital de Ilha Solteira, pela Companhia Energética de São Paulo.[4] Com apenas 23 anos, João Magalhães aceitou o desafio de manter o instituto funcionando, de portas abertas para atender à população.

 

Suas atribuições não eram simples, envolvendo o atendimento aos pacientes chagásicos da cidade e seu entorno. Dada a antiguidade do instituto, o local era muito conhecido pelas pessoas, que para lá acudiam em busca de atendimento e orientação. Em entrevista, o médico conta que quando iniciou o trabalho existiam 3.600 pacientes registrados com a doença, e no momento de sua aposentadoria, em 2009, esse número saltou para 10.000.[5] João Magalhães atribui esse crescimento ao melhor mapeamento dos casos e ao fácil acesso que a população tinha ao Posto, que prestava o serviço de sorologia e, portanto, fornecia o diagnóstico.

 

Chama a atenção o grande número de pessoas atendidas pelo médico, que fazia o acompanhamento dos pacientes, monitorava a evolução dos casos, orientava e encaminhava as pessoas para diversos tratamentos. Em razão dos efeitos da doença no coração dos pacientes crônicos, João Magalhães acabou tornando-se um cardiologista na prática médica, atualizando e solidificando seus conhecimentos por meio de especializações e participação em congressos da área. No Posto, ele realizou cerca de 12.000 eletrocardiogramas, com análise dos resultados e emissão de laudos. Esse trabalho tinha efeitos para além da saúde dos pacientes, pois muitos deles conseguiram a aposentadoria rural (até mesmo retroativa), graças aos laudos emitidos pelo médico, possibilitando que as pessoas clinicamente inválidas para o trabalho tivessem uma renda digna, com melhoria em suas condições de vida e de toda a família.

 

João Magalhães também realizava o exame contrastado do esôfago, para diagnóstico de possível megaesôfago, que é a dilatação do órgão em decorrência da doença de Chagas. Nesses casos, e também quando era preciso implantar marcapasso em chagásicos com arritmia, o médico realizava o encaminhamento das pessoas para centros de referência em Belo Horizonte, principalmente para o Hospital Vera Cruz, onde ele atuou quando estudante.

 

Segundo o médico, a equipe do Posto era integrada e harmoniosa, pautando-se na ética e no respeito entre colegas e com os pacientes. Por esse motivo a população confiava nos profissionais, sabendo que ao procurar o local seriam acolhidos, examinados e orientados em caso de eventual diagnóstico de doença de Chagas. João Magalhães conta que muitas pessoas chegavam para o atendimento em pânico, com medo dos efeitos do agravo, mas eram tranquilizadas e orientadas quanto ao tratamento. Muitas mortes súbitas foram evitadas com essa abordagem humanizada, contribuindo para a longevidade dos pacientes.

 

Com o retorno de João Carlos Pinto Dias para trabalhar no Posto, os dados levantados e registrados por João Magalhães, em seus exames clínicos, eletrocardiogramas e laudos, serviram de base para pesquisas sobre doença de Chagas, ampliando a compreensão sobre os efeitos cardiológicos do agravo. Uma das lembranças que mais marcaram o médico foram as visitas ao Posto do cientista Aluízio Rosa Prata, professor da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (Uberaba), que levava estudantes para conhecer o trabalho ali desenvolvido e realizar estudos de caso. Outra recordação importante foram as investigações feitas por um grupo de pesquisadores que incluía o geneticista Henrique Krieger (na ocasião vinculado à Universidade Federal de São Carlos/SP), que realizou estudos em Bambuí referentes à imunologia, de modo a compreender como pessoas residentes em certas casas foram contaminados pela doença de Chagas, enquanto outras, morando no mesmo local, não estavam infectadas. João Magalhaes auxiliou nesse trabalho, realizando exames clínicos e cardiológicos. Fato é que os dados levantados pelo médico subsidiaram a realização de várias pesquisas, e ele foi incluído como co-autor de artigos científicos.[6]

 

De acordo com o médico, a estrutura do Posto, apesar de pequena, era suficiente para o desempenho das atividades, sendo bastante autônomo. O Instituto René Rachou prestava o suporte necessário, fornecendo materiais, equipamentos e realizando obras. Com o tempo, ocorreu diminuição dos casos de doença de Chagas na região, em razão das campanhas educativas e atividades de prevenção. Por isso, João Magalhães decidiu ampliar o atendimento médico prestado para qualquer pessoa que procurasse o Posto, e não apenas aos portadores da doença de Chagas. O acesso à saúde pública em Bambuí foi ampliado após a Constituição de 1988, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que foi implantado na cidade sob a supervisão da médica Marília Kathya Coutinho, esposa de João Magalhães, que foi Secretária de Saúde municipal entre 1990 e 2000.

 

Assim, a família de João Magalhães tem longo histórico de contribuições para a saúde da população de Bambuí e entorno. Ao rememorar sua trajetória, o médico se impressiona como um Posto tão pequeno, com poucos funcionários, foi capaz de realizar tamanho trabalho de pesquisa, atendimento a pacientes, profilaxia e combate à doença de Chagas, com impacto para a compreensão do agravo a nível mundial. Por isso, no momento da sua aposentadoria, em 2009, João Magalhães encerrou sua carreira com grande senso de realização profissional e humana. Mudou-se então para Belo Horizonte, para juntar-se à família que já residia na capital.

 

João Magalhães foi o último médico a atuar no Posto Avançado de Pesquisas Emmanuel Dias. Ele se diz orgulhoso de integrar a Fiocruz e o Instituto René Rachou, além de gratificado por compartilhar sua história em prol da saúde pública. Segundo o médico, sua maior alegria foi a de fazer a diferença na qualidade de vida de milhares de pessoas, mantendo até o final a promessa que fez ao pesquisador Genard Nóbrega, de conservar o Posto aberto e funcionando para o bem-estar dos habitantes da região.

 

Agradecimentos: O Projeto Memória da Fiocruz Minas agradece ao Dr. João Magalhães, pela entrevista concedida no dia 04/04/2025, e à Marília Kathya Coutinho, pela mediação, recepção às entrevistadoras e informações complementares prestadas.

 

 

[1] FIOCRUZ. Casa de Oswaldo Cruz. Documentos Presidência. Código: 01-05-0556, p. 149; DIAS, João Carlos Pinto. Seventy years of the Chagas disease Bambuí Project: celebration and perspectives. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, vol. 46, n. 5, p. 533-535. Algumas fontes apontam o ano de 1980 como a data de alteração do nome do Posto. Em meados da década de 1970 o CEPMC passou para a responsabilidade do Centro de Pesquisas René Rachou, em razão da incorporação da instituição à recém-criada Fundação Oswaldo Cruz, no ano de 1970. In: KROPF, Simone Petraglia. Doença de Chagas, Doença do Brasil: ciência, saúde e nação, 1909-1962. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2009, p. 514.

 

[2] SOUZA, Cordovil Neves. Construção e Reconstrução de novas formas sociais de vida nas colônias de hanseníase do Brasil – Estigma, segregação, violência e superação. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Medicina. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, p. 150.

 

[3] João Magalhães foi contratado pelo regime de trabalho CLT, após reforma administrativa federal foi incorporado como servidor público.

 

[4] DIAS, João Carlo Pinto; BRICEÑO-LEÓN, Roberto. La enfermedad de Chagas en una historia de vida: conocer la enfermedad, cambiar el mundo. Entrevista a João Carlos Pinto Dias. Cad. Saúde Pública, 25 Sup. 1, 2009, S179.

 

[5] MAGALHÃES, João Moreira Soares. Entrevista concedida ao Projeto Memória: trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou. Entrevistadoras: Natascha Ostos e Cláudia Gersen. Belo Horizonte, residência do entrevistado, gravação de áudio. Data: 04/04/2025.

 

[6] PERALTA, J. M.; GINEFRA, P.; DIAS, João Carlos Pinto; MAGALHAES, João M. S.; SZARFMAN, A. Autoantibodies and chronic Chagas’s heart disease. Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, vol. 75, 1981, p. 568-569; DIAS, João Carlo Pinto; CAMACHO, Luis; SILVA, José; MAGALHÃES, João Soares; KRIEGER, Henrique. Esofagopatia chagásica na área endêmica de Bambuí M.G., Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, n. 16, jan./mar., 1983, p: 46-57. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rsbmt/a/yJcCvt5QY6cn5YhtgtfgXpB/?format=pdf&lang=pt>.