04/09/2023
Especialistas em direitos humanos à água e ao saneamento de diferentes países advertem que grupos econômicos estão tentando envolver a Organização das Nações Unidas (ONU) na privatização dos recursos hídricos. O alerta foi feito em um texto comentário, publicado recentemente na respeitada revista científica The Lancet, com o título What water will the UN Conference carry forward: a fundamental human right or a commodity? [Que água a Conferência da ONU levará adiante: um direito humano fundamental ou uma mercadoria?]. De acordo com os pesquisadores que assinam o artigo, durante a segunda Conferência Global das Nações Unidas sobre a Água, realizada em março deste ano, corporações com fortes interesses econômicos se apropriaram da ideia de água como “bem comum global” para defender um modelo privatista, que poderá acarretar exclusão e desigualdade.
“A proposta foi apresentada pela Comissão Global sobre a Economia da Água, composta por pessoas da academia, governos e agências internacionais, que, apropriando-se do discurso de água como “bem comum”, defendeu uma ideia completamente oposta, que considera a água como mercadoria. Ou seja, apresentaram um discurso antigo, mas com uma roupagem nova, mais sedutora. O preocupante é que as discussões da conferência têm a capacidade de redirecionar políticas públicas; as autoridades podem se deixar envolver com essa ideia, podendo ter como consequência uma guinada perigosa”, afirma o pesquisador da Fiocruz Minas Léo Heller, o primeiro autor do artigo publicado na The Lancet.
Heller, que foi relator especial da ONU sobre direitos humanos à água e ao saneamento entre 2014 e 2020, contou que, durante o evento, a comissão argumentou que o subpreço da água deve acabar, pois a cobrança incentivaria o uso mais eficiente, geraria receitas e permitiria que os recursos fossem investidos em melhorias dos sistemas de água. A comissão também defendeu a necessidade de aumentar os investimentos em água por meio de novas modalidades de parcerias público-privadas. Mas, segundo Heller, o que não está sendo considerado é que a evidência histórica cumulativa mostra que as melhorias realizadas em sistemas de água não são derivadas de investimentos privados, mas de sistemas públicos e baseados na comunidade, por meio de recursos públicos, o que já foi reconhecido até pelo Banco Mundial.
“Além disso, há uma série de estudos que documentam os problemas gerados por esse modelo privatista, dentre os quais podemos destacar a má prestação do serviço, deterioração da qualidade da água, maior risco de intermitência do fornecimento e aumento da tarifa. A Inglaterra, por exemplo, que privatizou os serviços de abastecimento de água há 33 anos, está vivendo um colapso, acumulando aumento real das tarifas em 40%, sem que tenha havido investimentos em melhorias. Isso na Inglaterra, que tem uma regulação bem estruturada; agora, imagina em uma país com sistema de regulação frágil, como o Brasil”, destacou.
Outra preocupação dos especialistas em direitos humanos à água e ao saneamento é o risco de que a privatização deixe sem a cobertura dos serviços os municípios mais pobres, o que poderia ter impactos na saúde da população. Estudos recentes reforçam que o acesso a esgotamento sanitário está associado à redução da prevalência de diversas doenças, como esquistossomose e ancilostomíase. A falta de acesso aos serviços poderia influenciar no aumento da ocorrência dessas e outras doenças, gerando ainda mais demandas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Para além disso, há também a questão do tratamento da água que, realizado por empresas com a finalidade de lucro, pode não ser o mais sustentável, causando danos para a saúde.
Os especialistas também chamam a atenção para o fato de que municípios que privatizaram serviços de abastecimento de água e saneamento, especialmente na Europa e no Estados Unidos, estão reestatizando esses serviços. Entre as centenas de cidades que voltaram atrás estão Berlim, Paris, Budapeste, Bamako (Mali), Buenos Aires, Maputo (Moçambique) e La Paz. Estudos que se aprofundaram sobre essas experiências mostram que o motivo dos serviços voltarem para as mãos do setor público é o descumprimento das promessas feitas pelas empresas privadas que, na maioria das vezes, operam com muita falta de transparência. A questão se torna ainda mais complexa porque, segundo os especialistas, reverter o processo, de forma a retirar os serviços do setor privado, pode não ser tão simples.
“Reverter um contrato desses com uma empresa privada, em geral, é muito difícil, sendo que, na maioria das vezes, os municípios e estados saem perdendo, além de poderem levar a processos judiciais muito caros. Assim, autoridades que tomam a decisão de privatizar os serviços estão assumindo uma dívida política e social por cerca de 30, 35 anos, que é o tempo de duração dos contratos. É um governante tomando uma decisão que vai perdurar por oito ou nove gestões.”, explica Heller.
Outro argumento usado pela Comissão Global sobre a Economia da Água em seus relatórios é que, por se tratar de um bem comum, a água deve ter uma governança global, o que justificaria parcerias internacionais com o setor privado. Entretanto, os especialistas destacam que isso deixaria o poder local em desvantagem, pois teriam que negociar com corporações muito poderosas. Outro agravante, segundo os pesquisadores, é que os povos indígenas perderiam controle sobre seus territórios, ficando ainda mais prejudicados na luta para estabelecer seus direitos coletivos sobre lagos, rios e aquíferos.
“Estudos sobre o clima e biodiversidade mostram que adotar estratégias de conservação ambiental em nível global retirou dos indígenas o papel de guardiões tradicionais, muitas vezes, deslocando-os de suas próprias terras. Propor a água como bem global coloca em segundo plano as relações locais. A gestão da água precisa ser local porque é onde se estabelecem as relações”, afirma Heller.
Para os autores do artigo do The Lancet, a crise hídrica e seus efeitos sobre a saúde são reais, mas isso não pode ser resolvido por meio da reprodução de uma agenda neoliberal. Eles destacam a necessidade de investimentos públicos, bem como a de promover estabilidade nas companhias que fornecem os serviços de abastecimento e saneamento, pois, muitas vezes, muda-se o governo e alteram-se todas as pessoas que trabalham nas empresas, impossibilitando a criação de uma cultura que torne possível aprimorar a prestação dos serviços.
“Também é necessário atender uma parcela ignorada, excluída por viverem em assentamentos informais, como vilas e favelas, áreas rurais, indígenas e quilombolas. Além disso, é preciso haver transparência, permitindo que a população possa participar da tomada de decisões. Bem implementados, podemos ter serviços mais efetivos, que, inclusive, já existem”, destaca Heller.
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