O fosso do saneamento no Brasil
Foi lançado recentemente o primeiro relatório sobre o monitoramento das metas relativas a água e esgotos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Estas metas adotam um conceito de acesso aos serviços mais exigente que o adotado no período dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM/ ONU. Por essa razão, o quadro global exibido, para praticamente todos os países, é muito mais pessimista que aquele apontado em 2015, ano final dos ODM. A mensagem é que nos próximos 15 anos (agora já seriam 13) os países necessitarão se esforçar muito para o cumprimento das metas.
O monitoramento na era dos ODM exibia o Brasil em uma posição confortável, indicando acesso de 98% e 83% da população a serviços “melhorados”, respectivamente de água e de esgotos. Ocorre que, como já questionado por muitos, o conceito de acesso “melhorado” incluía soluções que não necessariamente protegem a saúde da população. O monitoramento para os ODS baseia-se no conceito de serviços “com gestão segura”, mais condizente com uma visão de saúde pública. Como era de se esperar, o Brasil não se sai bem no novo quadro.
O relatório aponta que apenas 39% da população brasileira têm acesso a serviços seguros de esgotos. No caso do abastecimento de água, o país não foi sequer capaz de fornecer informações necessárias para a estimativa nacional, mas apenas para a zona urbana, que apresenta uma proporção de 97% da população com acesso seguro.
As novas estatísticas sobre o esgotamento sanitário, que colocam o Brasil em melhor situação do que Argentina e Colômbia, mas pior do que Chile e México, constituem um importante alerta. E nos mobilizam para refletir sobre duas perguntas centrais: quais são os determinantes dessa situação? Quais são seus efeitos?
Seria simplista responder à primeira questão apontando uma causa única, pois se trata de um setor complexo, que se move segundo uma dinâmica própria de uma política pública que depende de uma diversidade de agentes sociais. No entanto, pode-se dizer, sem riscos elevados, que as razões resultam de uma combinação de fatores, como: políticas instáveis, planejamento pobremente implementado, fluxo descontínuo de investimento público, baixo controle pela sociedade, regulação com baixa efetividade, abordagem limitada na prestação de serviços, descontinuidade administrativa da gestão. Talvez, “estabilidade” seja a característica que mais diferencie a situação do setor de saneamento em países que estão próximos do acesso universal daqueles que acumulam um passivo persistente.
Quanto aos efeitos desse quadro, obviamente são múltiplos. Eu os sintetizaria ressaltando que a parcela da população com serviços inadequados é composta por aqueles brasileiros com menor capacidade econômica, pior acesso à educação e à assistência à saúde e com acesso precário à moradia... Ou seja, ao saneamento inadequado soma-se a um conjunto de privações, contribuindo para aumentar o fosso entre os que têm e os que não têm e para submeter esses últimos a muito maiores chances de contraírem doenças e de terem seus direitos humanos violados.
Apenas 39% têm acesso a serviços seguros de esgotos. No caso do abastecimento de água, país não foi sequer capaz de fornecer dados para estimativa nacional.
*Por Léo Heller, pesquisador da Fiocruz Minas
Artigo publicado originalmente no jornal O Globo, em 29/7