A Tenda Ciência Virgínia Schall, no Campus Manguinhos, recebeu na terça-feira (12/3) a terceira edição da roda de conversa
Trajetórias negras. O evento, promovido pelo Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz, que em maio vai comemorar dez anos, celebrou o Dia Internacional da Mulher e fez parte das comemorações dos 21 Dias de Ativismo contra o Racismo. A mesa foi composta pela presidente da Fundação, Nísia Trindade Lima, pelas convidadas Marilda Gonçalves, diretora do Instituto Gonçalo Moniz (IGM/Fiocruz Bahia), e Zélia Profeta, diretora do Instituto René Rachou (IRR/Fiocruz Minas), e pela mediadora Roseli Rocha, pesquisadora do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF) e coordenadora colegiada do Comitê. “O racismo é estrutural e estruturante das relações sociais no Brasil. Por isso é importante, hoje, celebrar o Dia Internacional da Mulher com luta e reflexão crítica, além de colocar a mulher negra como um tema central”, afirmou Roseli. O vídeo com a íntegra do evento pode ser acessado
aqui.
Uma verdade inconveniente
Embora a violência contra a mulher e a discriminação de gênero sejam democráticas no Brasil, pois perpassam todas as camadas e segmentos sociais, a violência de gênero tem um impacto ainda mais significativo sobre a mulher negra. “Em todas as esferas sociais, as mulheres negras aparecem em nível gritante de desigualdade. São elas as maiores vítimas da violência obstétrica, comprovada por pesquisas, como a Nascer no Brasil, com os índices alarmantes de mortalidade materna. Também na questão da educação e da violência doméstico-familiar. Não dá para falar de violência contra a mulher, desconsiderando o viés étnico-racial”, complementa Roseli.
"O racismo não deve ser uma luta só de populações negras ou indígenas. Ele é tão perverso, que desde os primeiros anos de escolaridade, crianças já vão sendo educadas a reproduzirem este comportamento. O jornalista Edson Cardoso já dizia que se deve falar sobre racismo desde o primeiro banho na creche, tanto para crianças negras quanto para crianças brancas, porque essa nossa educação racista, sexista e misógina, educa crianças brancas a se sentirem confortáveis e a gostarem dos privilégios de serem brancas. Então, o racismo mata negros e negras, mas ele é construído socialmente".
Trajetórias
Ao narrar sua trajetória de vida, a diretora da Fiocruz Minas disse que já vivenciou casos de racismo no trabalho, mas que ignora e responde com autoridade, o que segundo ela, faz as pessoas terem uma impressão errada de sua postura. “As pessoas acham que mulher tem que ser ‘boazinha’. Uma mulher não pode ter autoridade, que as pessoas acham autoritária”, conta Zélia. A diretora também relatou casos de racismo em seu dia a dia. “Ano passado, entrei em uma loja com uma amiga – branca de olhos claros – e a vendedora sequer olhou para mim. Só falava com a minha amiga, agindo como se eu fosse invisível. Eu quis sair da loja, mas minha amiga pediu para eu esperar. Quando a vendedora perguntou ‘o que ela desejava’, ela respondeu ‘Eu não desejo nada. Estou aqui só para carregar as sacolas dela. Quem tem dinheiro é ela’”, contou.
Zélia também falou sobre a atuação da Fundação no combate ao racismo. “Não basta não ser racista, é preciso dar exemplos também. E a Fiocruz, com a tese 11, aprovada no último Congresso Interno, está dando muitos bons exemplos. Projetos e programas como as cotas na pós-graduação e em concursos; um edital do Inova levando em consideração a questão da maternidade; e todo o trabalho para a equidade, inclusive questões que estão sendo discutidas no Conselho Deliberativo, de ações e propostas que deem visibilidade às mulheres da Fiocruz na ciência. É um debate importante de ser feito aqui, mas que ecoe para outros lugares”, concluiu.
Racismo institucional no Brasil
O racismo institucional é uma das formas de manifestação do preconceito racial. O termo, cunhado pelos ativistas Stokely Carmichael e Charles V. Hamilton do movimento Black Power no final de 1960, passou a ser utilizado no Brasil em 2005, com o lançamento do Programa de Combate ao Racismo Institucional no país. Ele é definido por privilégios a determinado grupo de indivíduos em detrimento de outros, em razão de distinções étnico-raciais, revelando-se na diferença de tratamento, distribuição de serviços ou benefícios. E essas diferenças se mostram nas mais variadas esferas.
Marilda Gonçalves, diretora da Fiocruz Bahia, conta que, apesar de sua trajetória de sucesso, precisou enfrentar situações de racismo. “Quando você é uma mulher negra, há dúvidas em relação a sua performance. Apesar de eu ter passado por várias áreas da instituição e saber mais do que muitas pessoas que estavam ali sobre o que era o Instituto Gonçalo Muniz, muitos me olhavam sem confiar em mim”, afirma. “No Brasil, tem essa coisa do racismo velado. As pessoas não dizem, elas insinuam e te deixam na dúvida: ‘será que eu interpretei errado?’”, revela.
"Também já passei por uma situação em que eu estava na bancada com uma aluna, branca, de mestrado. Aí entrou um paciente e disse ‘Quero falar com a doutora Marilda’. Eu estava na bancada, trabalhando, e a pessoa foi direto na minha aluna e perguntou ‘Doutora Marilda?’. E a minha aluna respondeu constrangida ‘A doutora Marilda é ela, não eu’".
Movimento antirracismo
“No Brasil, não tivemos uma discriminação racial institucionalizada, mas temos uma fortíssima discriminação racial. A mesa resgata isso, ainda que sejam trajetórias de êxito, como várias outras histórias são”, disse a presidente da Fiocruz. “A Zélia levantou a ideia, no Conselho Deliberativo, de que, para além das ações do Comitê, nós gestoras também deveríamos fazer um movimento. O retorno da Natalia Kanem [diretora-executiva do Fundo e População das nações Unidas e subsecretária-geral da ONU], no dia 22 de março, na aula inaugural da Fiocruz, é uma dessas ações”, afirmou Nísia.
Quanto às situações de preconceito, Nísia também afirmou ter enfrentado, apesar de ser uma mulher branca. “Não sofri estas discriminações, mas sofri outras. Da capacidade, da desqualificação da fala”, disse. A presidente também frisou a importância de debates como esses estarem na agenda da Fiocruz, no campo da saúde, visto que trabalhadores da saúde são alvos de discriminação, mas também o praticam. “É um compromisso da Fundação trabalhar com políticas que se oponham a essas práticas discriminatórias e que reforcem a equidade e uma democracia efetiva no nosso país”, concluiu Nísia.
21 dias de ativismo contra o racismo
O Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, criado pela Organização das Nações Unidas (ONU), é celebrado em 21 de março em referência ao Massacre de Shaperville, na África do Sul. Em 21 de março de 1960, em Joanesburgo, centenas de pessoas faziam um protesto contra a Lei do Passe, que obrigava a população negra a portar um cartão que continha os locais onde era permitida sua circulação. Apesar de ser uma manifestação pacífica, a polícia do regime de apartheid abriu fogo sobre a multidão resultando em 69 mortos e 186 feridos.
Para fortalecer e ampliar as discussões a respeito do racismo, além de lutar para preservar os direitos já conquistados, foi criado, em 2017, o movimento 21 Dias de Ativismo contra o Racismo, que este ano ocorrerá de 7 a 27 de março em diversas cidades brasileiras. Ao longo de três semanas, iniciativas como palestras, debates e apresentações culturais questionarão as desigualdades vivenciadas por esta população.
Fonte: Agência Fiocruz de Notícias
Repórter: Érika Farias