06/03/2023
A saúde dos povos originários em Minas Gerais foi o tema da palestra de abertura do ano letivo da Fiocruz Minas, ministrada pela deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), a primeira parlamentar indígena pelo estado. O evento, realizado no dia 3 de março, marcou também o início das comemorações de 20 anos dos programas de pós-graduação da unidade. Abrindo as atividades, o diretor da Fiocruz Minas, Roberto Sena Rocha, destacou a alegria de ter o auditório novamente cheio, depois de tanto tempo sem poder se reunir de forma presencial e, principalmente, para discutir um tema tão importante.
“Quero, primeiramente, falar da alegria de estar com a casa cheia, de poder receber os amigos e dar boas-vindas aos nossos estudantes. Quero também agradecer a deputada Célia Xakriabá por abrir um espaço em sua agenda apertada, para vir discutir com a gente um assunto que é muito caro para nós do IRR. Já fizemos alguns trabalhos com os povos indígenas, mas a crise dos yanomamis nos chama a atenção para a necessidade de discutir esse assunto com mais profundidade e é muito bom poder contar com a presença da deputada, que poderá nos ajudar a pensar de que forma a Fiocruz Minas pode contribuir com a saúde indígena”, ressaltou.
A vice-diretora de Ensino, Informação e Comunicação, Rita de Cássia Moreira de Souza, enfatizou que o evento presencial se tornou possível graças à vacina, ao SUS, à ciência e aos pesquisadores, que foram e são os principais aliados para vencer a batalha contra a Covid e tantas outras enfermidades que atingem a população. A vice-diretora também falou sobre a trajetória da pós-graduação na Fiocruz Minas, lembrando que, ainda antes de ofertar os cursos no IRR, os pesquisadores, por meio de parcerias, já integravam o corpo docente de outras unidades e instituições, mostrando a vocação da unidade para o ensino e o desejo de contribuir para a formação acadêmica de novos profissionais. Ela destacou ainda que a escolha do tema da aula inaugural tem por objetivo promover reflexões que possam contribuir para melhorar a qualidade de vida da população indígena. E encerrou seu pronunciamento, fazendo duas citações.
“Ressalto o trecho da fala de Virgínia Shall, que foi a primeira coordenadora da pós-graduação do IRR, durante a aula inaugural, realizada em 2003, que disse: ‘nosso desafio é buscar integração de estudos que vão desde a molécula até o social. E finalizo com a frase de Paulo Freire, uma das minhas preferidas, que diz: ‘educação não transforma o mundo; educação muda as pessoas, e as pessoas transformam o mundo”, finalizou.
A coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Nagila Secundino, destacou que poder celebrar o início do ano letivo de forma presencial demonstra que a ciência venceu e, por isso, é possível se reunir. Ela também destacou a satisfação de comemorar os 20 anos da pós-graduação, especialmente por se tratar de um programa exitoso. “A nossa pós-graduação é um caso de sucesso. Formamos, neste período, 294 mestres e 194 doutores. E onde eles estão? Poucos estão na indústria e muitos estão no setor público. Nossos egressos são professores, técnicos, que atuam, principalmente, em instituições públicas. No que se refere à internacionalização, temos egressos atuando em diversos países da América Latina, América no Norte e na Europa. Meu desejo, então, é que tenhamos mais um ano de sucesso, que possamos seguir juntos, e que seja leve e bom”, declarou.
A coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Paula Bevilacqua, falou sobre a emoção de ver a entrada da deputada Célia Xakriabá e sua assessoria e ressaltou que é uma oportunidade para se pensar na inclusão. “A Fiocruz tem uma política de cotas raciais, que vem se aperfeiçoando cada vez mais, mas ainda é um desafio importante para a nossa instituição promover a inclusão. Aqui na unidade, não temos nenhum representante dos povos indígenas. Por isso, fico muito feliz de ter a deputada aqui hoje, para nos ajudar a avançar nisso e de forma adequada. Precisamos trazer para o nosso cotidiano da pesquisa uma maneira de atuar, de forma que não façamos pesquisa ‘para’ as pessoas, mas sim ‘com’ as pessoas. E por isso é necessário que as pessoas, com suas diferenças, estejam representadas na instituição”, afirmou.
A vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Machado, disse se sentir honrada em participar da abertura do ano letivo da unidade, especialmente neste momento em que se comemoram os 20 anos da pós-graduação. “É uma data muito significativa, principalmente nesta unidade, que trabalha de forma articulada com a sociedade”, afirmou. A vice-presidente falou sobre a alegria de conhecer a deputada Célia Xakriabá e destacou a importância de transformar a ciência, incorporando diferentes vozes. “A deputada Célia Xakriabá também é autora e eu trouxe aqui comigo o livro Vozes indígenas da Saúde, da editora Fiocruz, em que Célia dialoga com outros indígenas, também autores, sobre a questão da saúde indígena. E eu tenho certeza de que vamos aprender muito hoje, ouvindo o que ela tem a nos dizer”, salientou.
Palestra- A deputada Célia Xakriabá iniciou sua participação entoando uma canção indígena e, ao finalizar, declarou: “Que a gente possa continuar cantando porque saúde não é somente o princípio ativo; saúde, para nós, é também o canto que cura; saúde, para nós, é quando a gente vai à casa do pajé e, mesmo que o chá que a gente toma seja um veneno, o jeito que ele coloca a mão no nosso corpo também cura”.
Segundo a deputada, a pós-graduação é um lugar muito importante para se pensar nos fazedores de ciência. Ela diz que seus familiares costumam afirmar que não são cientistas, mas ela sempre pergunta: “E como vocês sabem quando vai chover? Como vocês sabem, quando vão fazer um parto, que a mulher não pode ganhar a criança de parto natural? E eles respondem: porque a gente é ‘ciensosa’. Mas o que é ‘ciensosa’? É uma ciência que, mesmo a gente não indo para a universidade, nasce dentro da gente. A escola, a universidade estão dentro da gente; são as próprias pessoas”, destacou.
Célia Xakriabá contou que, quando entrou para a escola, a professora perguntou o que as crianças gostariam de ser quando crescessem. A maioria respondeu que queriam ser médicas, advogadas. Quando fez a mesma pergunta para a liderança indígena ali presente, ele disse: eu gostaria apenas de ter uma enxada bem amolada para plantar para todos esses doutores. Para a deputada, o maior desafio é se tornar médico, advogado, dentista, mas sem perder a autonomia alimentar. “Para mim, a maior riqueza não é a de quem tem o maior salário, mas a de quem produz sua própria autonomia alimentar. Quando a gente fala em soberania alimentar, eu também digo ‘saborania’ alimentar, porque quando vai embora parte do paladar, vai embora também parte do conhecimento. E o que isso tem a ver com a saúde? Tem a ver que hoje a alimentação tem sido sinônimo de adoecimento. Hoje, os indígenas estão adoecendo pelo envenenamento da alimentação”, afirmou.
Segundo Célia Xakriabá, cerca de 70% das crianças yanomamis estão com suas vidas em risco, devido à contaminação por mercúrio, gerada pelo garimpo ilegal. Outra consequência dessa prática, ainda conforme a deputada, é a violência contra a mulher; só nos últimos meses, 30 meninas foram estupradas.
“Há muito tempo venho dizendo: vocês sabem que o garimpo ilegal violenta nossos corpos? Eu desconheço o território indígena que ficou rico com o garimpo, desmatamento e a mineração. O que vem ocorrendo com o território indígena yanomami é o que vem acontecendo aqui pertinho, em Minas, com o povo Machacalis, onde, em 2019, 12 crianças morreram com diarreia. Isso em pleno século XXI; é também o que ocorre no território Krenak, bastante atingido pela mineração, e em várias comunidades indígenas”, afirmou. “Quando mataram o rio Krenak, mataram também um pouco do nosso jeito, da nossa identidade. Porque negar o direito do povo indígena de viver no rio é como tirar da mãe o direito de amamentar o seu filho”, disse.
Para a deputada, os acontecimentos no território yanomami escancaram para o Brasil uma contradição: os povos indígenas representam apenas 1% da população brasileira e protegem 80% da biodiversidade. “Como o povo que mais protege é também o povo que é mais vítima? Se fizermos a pergunta onde o desmatamento começa, eu digo que começa dentro de nós. Por isso, temos a tarefa importante de reflorestar dentro da gente. É preciso reflorestar o pensamento”, destacou.
Célia Xakiabá falou também sobre a importância da luta coletiva para os povos indígenas. Ela contou que, há algum tempo, uma colega de universidade, também indígena, disse que seu povo quase perdeu a liderança por ter matado uma capivara e guardado no congelador. “E eu perguntei: mas o que pode ter de tão afrontoso nisso? Ela respondeu que eles poderiam ter ficado sem a dádiva da carne por um ano, de castigo, porque não compartilharam o alimento. Então eu entendi: naquele dia, não foi só a caça que ficou guardada no congelador. Quantas histórias não deixaram de ser contadas quando não se compartilhou a comida? Há coisas que não podem ser guardadas no congelador”, disse.
A deputada ressaltou que o ataque aos direitos coletivos é a prática do amoricídio. Para Célia Xakriabá, a humanidade está perdendo a capacidade de amar. “Então, para finalizar, quero dizer sobre o compromisso que tenho nos próximos quatro anos, que é uma tarefa humanitária, a tarefa de lutar pelo território. Quando lutamos pelo território, lutamos também pela educação, pela ciência, pela saúde. Quem luta pelo território tem lugar para onde voltar. E quem tem lugar para onde voltar tem mãe, tem colo, tem cura. Que não deixemos de enxergar a terra como parente, porque a terra é alimento, é mãe, e a terra cura. Muitos aqui são doutores. E nós, povos indígenas, somos doutores da floresta.”
Ainda antes de encerrar sua participação, Célia falou sobre a importância do diálogo entre os povos indígenas e as instituições que trabalham com a ciência, promovendo uma interculturalidade na saúde. “Nesse sentido, quero muito dialogar aqui com a unidade para que possamos pensar projetos de extensão para serem desenvolvidos nos territórios indígenas. Estou à disposição caso tenham interesse em apresentar propostas para que a gente possa fazer esse trabalho em conjunto”, ressaltou.
Uma confraternização entre convidados e estudantes, realizada no salão da Asfoc, encerrou as atividades de abertura do ano letivo.
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