02/06/2025
Temas atuais estiveram em pauta durante as palestras realizadas na 6ª Jornada Científica, 33ª Reunião Anual de Iniciação Científica (Raic) e 20ª Reunião do Programa de Vocação Científica (Provoc). A abertura do evento, que ocorreu no dia 27 de maio, contou com uma apresentação do professor Helder Nakaya, da Universidade de São Paulo (USP), tendo como tema Da célula única à inovação em saúde: aplicação de IA nas doenças infecciosas e crônicas. Nakaya apresentou um panorama do uso crescente da inteligência artificial (IA) na pesquisa biomédica e na saúde pública, destacando como essa tecnologia está transformando a forma de produzir conhecimento científico.
Durante a apresentação, o pesquisador compartilhou experiências acumuladas em estudos que utilizam grandes volumes de dados biológicos – os chamados “big data” – para entender doenças como Covid-19, febre amarela, leishmaniose e câncer. Ele também mostrou como a IA tem sido aplicada para otimizar análises, detectar padrões e acelerar descobertas. “A gente saiu de uma era da informação para uma era da inteligência artificial. Hoje, o desafio não é mais gerar dados, mas saber fazer as perguntas certas para extrair sentido deles”, destacou.
Nakaya mostrou exemplos de ferramentas desenvolvidas em seu laboratório, como dashboards interativos e sistemas que integram dados públicos para identificar genes associados a doenças, e o uso de IA generativa, como o ChatGPT, para apoiar análises bioinformáticas. “É como ter um colega de laboratório que toma café com você. Ele não substitui a análise humana, mas ajuda a acelerar o trabalho”, disse, ao comentar o uso da ferramenta para filtrar centenas de genes ligados à morte por febre amarela.
Além das aplicações em biologia molecular, o professor apresentou iniciativas de impacto direto na saúde pública, como um aplicativo de leitura automatizada de cadernetas de vacinação – solução criada a partir de uma demanda do Ministério da Saúde a fim de digitalizar registros antigos. Também mostrou como a visão computacional tem sido usada para detectar parasitas em exames de laboratório e lesões de pele, ressaltando a importância de corrigir vieses raciais nos modelos de IA.
Outro projeto de destaque foi o uso de dados de geolocalização para identificar regiões de transmissão de malária e tuberculose, a partir do histórico de movimentação de pacientes. Segundo Nakaya, a integração entre ciência de dados e saúde pública tem um potencial transformador: “Se você tiver boas perguntas, é possível contar novas histórias com dados que já existem.”
Ao final, o pesquisador fez uma reflexão sobre o papel dos cientistas no futuro. Com o crescimento exponencial da IA, a habilidade mais importante será formular boas perguntas, e não apenas buscar respostas. “O conhecimento está acessível, mas isso não significa entendimento. Ser cientista é saber interpretar, conectar, criar sentido. É isso que vai nos diferenciar das máquinas.”
Divulgação científica- No segundo dia de evento, a bióloga Júlia Quintaneiro conduziu uma palestra sobre os desafios de divulgar a ciência, intitulada Divulgação científica: aprenda a mudar a narrativa antes que a desinformação faça isso por você. Júlia usou experiências pessoais para discutir estratégias acessíveis e eficazes de divulgação.
“Quando falo que sou bióloga, as pessoas logo perguntam se eu estudo bichos ou plantas. Aí tenho que explicar que eu pesquiso humanos”, contou. Para a palestrante, a biologia e a ciência precisam extrapolar fronteiras, sair dos laboratórios. “A gente precisa aprender a dialogar com quem está fora do nosso universo. Às vezes, nem o colega do lado sabe exatamente o que pesquisamos, imagine o público em geral.” Júlia ressaltou que comunicar ciência também envolve falar das condições de trabalho dos pesquisadores. “Fazer ciência é, muitas vezes, não ter direitos trabalhistas e não ser bem remunerado, e a gente precisa falar sobre isso também”, disse.
A bióloga apresentou dados da Pesquisa de Percepção Pública da Ciência, realizada em 2023, para mostrar que o interesse pela ciência é real: seis em cada dez brasileiros se dizem interessados pelo assunto, sendo que o tema "medicina e saúde" foi citado por 77% dos entrevistados. “Se há tanto interesse, por que ainda comunicamos tão mal?”, questionou. Para ela, a resposta está na falta de estratégia e conexão com os públicos. “Precisamos mudar a forma como contamos essas histórias.”
Júlia contou ainda que viaja pelo país, visitando museus de ciência e produzindo conteúdo para as redes sociais. Ela destacou que a divulgação científica pode ser feita com poucos recursos, desde que se tenha clareza sobre o que comunicar, para quem e por quê. “Divulgação não é simplificar. É escolher o que não dizer”, afirmou. Júlia também compartilhou princípios básicos do jornalismo científico, como começar pela informação mais relevante e informar quem fala, quando, como e por que fala.
Entre os formatos possíveis, citou podcasts, HQs, festivais como o Pint of Science, revistas, vídeos e até desfiles de moda e shows de drag queens que falam de ciência. “A gente precisa ocupar os espaços com criatividade, diversidade e propósito”, salientou.
Para finalizar, a bióloga reforçou a importância de trabalhar a narrativa, definir objetivos de comunicação e evitar jargões sem explicação. E deixou um alerta: “Se você não contar sobre a sua ciência, alguém vai contar — e talvez conte errado.”
Saúde mental- Já no terceiro dia de atividades, a psicóloga Mariana Araújo da Silva, do Centro de Apoio ao Discente (CAD/Fiocruz RJ), provocou a plateia logo no início de sua palestra com uma proposta interativa. Usando um código QR, pediu que os participantes escrevessem, anonimamente, palavras que definissem o que é saúde mental. “Fiz isso para vermos a que o tema nos remete, e veio muito forte a ideia de ansiedade”, comentou a psicóloga, destacando que a proposta do encontro é criar um momento de diálogo. “A ideia aqui hoje é conversa, é troca, é construção coletiva”, disse.
Baseando-se em um conceito do filósofo Georges Canguilhem, Mariana ressaltou que compreender saúde envolve reconhecer a capacidade de cada indivíduo para lidar com as adversidades cotidianas, criando novas normas de vida mesmo diante de dificuldades. “Saúde não é apenas ausência de doença. Ela é atravessada por fatores sociais, políticos, culturais e relacionais. Por isso, não se pode tratar o sofrimento psíquico como algo individual, desconectado da realidade social”, afirmou.
Segundo a psicóloga, o adoecimento pode acontecer quando as pessoas perdem a autonomia sobre o próprio fazer. “A gente adoece quando não consegue deixar algo nosso no que faz, quando somos impedidos de imprimir nosso modo de existir no trabalho ou na pesquisa”, afirmou. E destacou: “esse tipo de impedimento aparece com frequência no ambiente científico e na vida acadêmica”.
Mariana também apontou que, embora estratégias individuais como terapia, exercícios físicos e medicação sejam importantes, elas não dão conta sozinhas da complexidade do problema. “Minha reflexão aqui é sobre estratégias coletivas. Porque o que vemos é uma ênfase em soluções individualizantes.”
A palestrante também apresentou fatores frequentemente associados ao comprometimento da saúde mental na pós-graduação, que são instabilidade financeira, pressão por prazos, incertezas quanto ao futuro, processos de orientação verticalizados, excesso de preocupação com o currículo Lattes e isolamento social. “Muitos estudantes se queixam da solidão e, por isso, precisamos pensar em como construir uma trajetória com mais interlocução, com uma rede de apoio”, disse.
Entre as estratégias de cuidado coletivo, Mariana destacou a importância de redes de apoio internas e externas, políticas institucionais de acolhimento, apoio financeiro para pessoas em vulnerabilidade, projetos culturais e artísticos e processos de orientação mais horizontais.
A psicóloga também apresentou o trabalho do Centro de Apoio ao Discente (CAD), política institucional da Fiocruz desde 2017, que ganhou robustez com a implementação da Política de Apoio ao Estudante, em 2021. O CAD atua promovendo o desenvolvimento pessoal, acadêmico e profissional dos estudantes, com foco na formação cidadã e na redução de desigualdades no percurso formativo.
Antes de encerrar sua apresentação, Mariana propôs algumas perguntas para nortear o debate e estimular a reflexão entre os estudantes: “quais são os principais desafios enfrentados hoje na pós-graduação? Como tem sido a experiência de orientação? Como podemos tornar a pós-graduação um espaço de promoção de saúde para docentes e discentes”?
O debate com a plateia contou com a participação da psicóloga Flávia Diotaiuti, do Projeto Cuidar, da Fiocruz Minas. Durante as discussões, os estudantes expuseram dificuldades enfrentadas e também manifestaram o desejo de reabilitação da APG.
Filariose- No último dia de evento, o casal Eliana Maurício da Rocha e Gilberto Fontes, pesquisadores da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ), ministraram a palestra Filariose linfática no Brasil: a participação de estudantes, pesquisadores e serviços de saúde na eliminação da transmissão da Wuchereria bancrofti. O evento marcou o reconhecimento de quase quatro décadas de trabalho dos dois cientistas.
Eliana abriu a apresentação contando o início da trajetória do casal, que se conheceu fazendo pesquisa na Fiocruz Minas. Eliana estudava malária, e Gilberto, doença de Chagas. Eles começaram a namorar e, como queriam se casar, fizeram concurso para a Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Com a aprovação, se mudaram para Maceió, onde desenvolveriam uma série de pesquisas voltadas para a filariose, tornando-se referências sobre o tema.
“Naquela época, no final da década de 1980, o Ministério da Saúde declarava que a filariose só estava presente em Belém e Manaus, mas dois pesquisadores da universidade, Gerusa Dreyer e Geraldo Vergetti, apresentaram evidências de que a transmissão da filariose ainda ocorria em Maceió. Assim, passamos a trabalhar com o tema e a fazer pesquisa de campo. Foi um início difícil, pois tínhamos laboratório, mas não tínhamos insumos e, às vezes, usávamos lâminas de exames Papanicolau para fazer as análises. Aos poucos, conseguimos apoio para projetos, envolvemos estudantes de iniciação científica, monitores, fomos organizando as atividades e, anos depois, conseguimos montar o mestrado”, contou.
Ao tomar a palavra, Gilberto destacou a satisfação de retornar ao lugar onde a atuação na pesquisa começou. “É um privilégio grande voltar a esta casa onde fomos formados”, disse.
Ele fez uma contextualização sobre a situação da filariose linfática, lembrando que a doença ainda afeta cerca de 100 milhões de pessoas no mundo. “É uma enfermidade causada por vermes que se alojam nos vasos linfáticos. O vetor é o mosquito Culex, que se infecta ao picar uma pessoa contaminada e transmite o parasita a outras.”
O pesquisador explicou o ciclo do parasita Wuchereria bancrofti, que se desenvolve apenas no ser humano. Segundo ele, a microfilária migra para o sangue e pode ser detectada apenas em horários específicos, principalmente após as 22h. “Muitos pacientes passam anos sem saber que estão infectados. Quando percebem, já estão na fase crônica”, afirmou.
Gilberto também mostrou o trabalho realizado ao longo de 36 anos, que envolveu muita pesquisa de campo para realização de diagnóstico em pacientes, análises de mosquitos e uma série de ações voltadas para tratamento em massa. “Nossa estrutura era bastante limitada e, aqui, quero destacar que nosso apoio veio principalmente dos estudantes. Foram mais de 500 alunos de graduação envolvidos desde 1999, quando o programa foi implantado”, afirmou. “Eles iam a campo, realizavam exames, participavam do tratamento e acompanhavam os pacientes, contou.
De acordo com o pesquisador, entre 2006 e 2010, foram realizados exames em crianças, em mosquitos e em ex-pacientes. Os resultados foram negativos. Em 2010, restava apenas um foco de transmissão ativo no país, na região metropolitana de Recife. “Foi o único lugar onde se realizou tratamento em massa. Cerca de 250 mil pessoas foram tratadas em um ano”, lembrou Gilberto.
Em meados de 2024, o Ministério da Saúde enviou à Organização Mundial da Saúde (OMS) um dossiê com os dados consolidados, com resultados dos inquéritos e descrição de todo o trabalho realizado ao longo dos anos. Em 3 de setembro, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, assinou o documento que reconhece a eliminação da transmissão da filariose linfática no Brasil. “Agora, a discussão gira em torno do plano de vigilância pós-eliminação, com foco inicial em Recife. Essa é a nossa história”, concluiu emocionado e emocionando a plateia.
Após a palestra, em nome da Fiocruz Minas, as vice-diretoras Luzia Helena de Carvalho e Rita de Cássia Moreira de Souza e a professora Lúcia Galvão, da UFMG, entregaram placas a Eliana e Gilberto, como forma de homenagear os dois principais responsáveis pelo controle e eliminação da transmissão da doença no Brasil.
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