A saúde das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Mineradora Vale, em Brumadinho, foi tema de uma audiência pública, promovida pela deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL) e pelo Observatório de Desastres da Mineração- Gestão de Risco e Direitos Humanos da Fiocruz Minas. A reunião, realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, na semana passada, contou com a participação de moradores de Brumadinho, movimentos sociais ligados aos direitos de atingidos por barragem, pesquisadores da Fiocruz e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bem como de representantes das secretarias estadual e municipal de saúde, do Conselho Estadual de Saúde e da Promotoria de Saúde de Minas Gerais.
Abrindo os pronunciamentos, a deputada Bella Gonçalves ressaltou a importância da discussão, ainda que tenha se passado seis anos do rompimento da barragem. “Sabemos que os impactos do desastre não se restringem ao rompimento, mas se prolongam por um período indeterminado. Nesse sentido, é muito importante nos mobilizarmos para que possamos construir protocolos para o Sistema Único de Saúde (SUS), de forma a garantir um atendimento adequado para a população”, ressaltou.
Moradores de Brumadinho e de municípios que integram a Bacia do Rio Paraopeba falaram sobre os problemas enfrentados e destacaram a demora para a implementação dos protocolos de atendimento e de reparação de danos ambientais, além da falta de transparência nos acordos firmados com a Vale. “Ter projeto em andamento não significa que estão sendo executados e que as necessidades da população estão sendo atendidas. Estamos com um agravamento dos quadros clínicos da população, porque não temos profissionais de saúde para atender. Compram equipamentos, mas não treinam os profissionais para usar. Anunciam-se milhões em investimento no município, mas não se atentam para as fragilidades de algumas regiões”, afirmou Robson de Oliveira Barbosa, do Distrito de Piedade do Paraopeba. “Precisamos que esses protocolos saiam do papel. Correm para fazer acordo, mas não fazem o acordo acontecer. Além disso, os acordos são feitos sem a participação dos moradores, ou seja, é muita gente por nós sem nós. Essa negação dos nossos direitos está nos adoecendo ainda mais; estamos com o psicológico afetado”, desabafou Michele Rocha, do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB).
Representantes dos povos indígenas que vivem na região também estiveram presentes. Carina Kaxixó, do município de Martinho Campos, reforçou que a demora para a solução dos problemas ambientais impacta na saúde das pessoas. “Os estudos mostram a presença de metais pesados no organismo e no meio ambiente, mas até hoje não houve a reparação de danos ambientais. Na minha etnia, o meio ambiente é o nosso coração. As pessoas estão doentes porque esse desastre mexeu com o sistema de vida delas”, disse. Para o Cacique Sucupira, da comunidade Pataxó, em São Joaquim de Bicas, os direitos dos povos indígenas estão sendo desrespeitados. “Temos uma ligação direta com o rio; o rio faz parte de nós. Não podemos mais fazer nossos rituais e isso nos adoece. A Vale cometeu também um crime religioso contra os povos indígenas”, afirmou.
Capitã Pedrina, integrante da articulação Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAM A) que luta pela reparação dos afetados pelo desastre da Vale, destacou que, além das 272 mortes ocorridas no dia do rompimento da barragem, outras mortes ainda estão ocorrendo em consequência da depredação ambiental causada pela mineração. Ela também ressaltou a importância de se manter a mobilização para que sejam respeitados os direitos. “Mexeu com a natureza, mexeu com todos nós. E não estamos vendo nenhuma ação efetiva para que isso não ocorra mais. Não existe transparência, não existe respeito, não existe seriedade. Precisamos compreender que fazemos parte dessa natureza que está sendo destruída. Que a gente consiga buscar uma saída, mas não uma saída que dependa desses que nos adoecem”, afirmou.
Estudo- Os pesquisadores Sérgio Peixoto, da Fiocruz Minas, e Carmen Fróes, da UFRJ, apresentaram resultados parciais do Programa Saúde Brumadinho que, desde 2021, avalia a saúde da população após o rompimento da barragem. À frente do Projeto Bruminha, com foco na saúde das crianças entre 0 e 6 anos de idade, Carmen mostrou que, entre 2021 e 2023, houve uma melhora nos índices de antropometria, que mensuram as dimensões corporais, e de neurodesenvolvimento. Entretanto, houve um aumento dos relatos de alterações respiratórias e na taxa de detecção de metais na urina das crianças. “O arsênio foi encontrado em 100% das amostras analisadas e houve um crescimento na taxa de detecção de chumbo, mercúrio e cadmio. Isso mostra um aumento da exposição dessas crianças a metais pesados ao longo desses três anos”, explicou.
Sérgio Peixoto, que conduz o estudo entre os adultos e adolescentes, mostrou que os problemas relacionados à saúde mental afetam os moradores de Brumadinho em uma proporção superior ao que se verifica entre a população do Brasil. “Em 2024, 28,2% dos entrevistados em Brumadinho mencionaram sintomas depressivos, 20% indicaram transtorno de ansiedade e 18% relataram diagnóstico de depressão, um valor bem acima do verificado entre os brasileiros avaliados na Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE, que foi de 10,2%”, afirmou. Ainda conforme o pesquisador, o Sistema Único de Saúde é a principal referência dos entrevistados. “O uso dos serviços públicos de saúde é bastante elevado. Isso mostra que há uma grande demanda para o SUS no município, mas também significa que as pessoas estão procurando pelos serviços”, destacou.
A secretária municipal de saúde de Brumadinho, Cinthya Mara Gonçalves, que assumiu a gestão da saúde no município em janeiro de 2025, explicou que ações em diferentes frentes estão sendo realizadas desde o início do ano, como o credenciamento de cinco unidades básicas de saúde, com o intuito de reforçar a atenção primária. “Além disso, estamos conversando com a Secretaria de Estado de Saúde para que o hospital municipal se torne referência e, também, para que possamos qualificar nosso laboratório para a realização de exames”, afirmou.
Representando a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), o assessor de relações institucionais, Luiz Fernando Prado de Miranda, e o subsecretário de Vigilância em Saúde, Eduardo Campos Prosdocimi, apresentaram ações realizadas e atividades que serão desenvolvidas nos próximos meses. “Estamos em permanente diálogo com a prefeitura de Brumadinho, buscando uma articulação com outras políticas assistenciais. O estudo da Fiocruz nos trouxe provocações importantes para repensarmos a assistência à saúde. Queremos ter o apoio da academia também para pensar em respostas à exposição a metais. Já estamos elaborando o Plano de Recuperação Socioambiental, que sofreu um atraso no desenvolvimento, mas me comprometo a dar mais celeridade nesse processo”, explicou o assessor de relações institucionais.
O subsecretário de Vigilância em Saúde falou sobre ações reparatórias, como o VigiÁgua, o VigiAr e o Programa de Vigilância em Desastres que, juntos, receberam um investimento de 70 milhões de reais. Ele também mencionou ações de educação permanente, com a realização de vários cursos para capacitação de profissionais, entre outras atividades. “Também estamos na fase 1 dos Estudos de Avaliação de Riscos à Saúde Humana e Risco Ecológico, já contratando a empresa executora das próximas fases”, disse.
Representando o Ministério Público de Minas Gerais, o promotor de justiça Leonardo Castro Maia esclareceu que o acordo judicial de reparação de danos firmado com a Mineradora Vale não contempla todas as questões de saúde. Segundo o promotor, há uma série de perícias judiciais em andamento, sob responsabilidade da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que certamente serão consideradas pelo juiz. “Há também um processo em curso sobre danos individuais, que contemplam questões de saúde. Mas, para além disso, reforçamos a necessidade de um protocolo específico de saúde, que leve em consideração o fato de o município estar em área de mineração”, avaliou.
O diretor Institucional do Instituto Guaicuy e coordenador do Projeto Manuelzão, Marcus Vinícius Polignano, salientou a necessidade de criação de um plano estadual de reparação do SUS, de forma a não sacrificar o sistema de saúde dos municípios que já está sobrecarregado. “Se não tiver um plano de reparação do SUS, não vai ter como resolver as questões que afetam a população. Além disso, é inconcebível que os acordos continuem sendo feitos sem que os atingidos participem. A gente clama por justiça, mas parece que estamos cada vez mais distantes daquilo que a gente almeja”, afirmou.
Marta de Freitas, da Coordenação Nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração, reforçou a importância de se criar um plano de recuperação do SUS em Minas Gerais, com foco na atividade principal do estado. Segundo Marta, entre 2002 e 2019, houve oito rompimentos de barragem, que causaram um total de 299 mortes diretas. “O estudo da Fiocruz mostra que as pessoas estão expostas a metais pesados. Quais as consequências disso a longo prazo? O cadmio e o arsênio são cancerígenos; o mercúrio causa demência e delírios, o manganês causa demência e transtornos mentais. Precisamos reestruturar o SUS, considerando que Minas Gerais tem mais de 300 barragens”, ressaltou.
Joceli Andrioli, da Coordenação Nacional do MAB, destacou que o rompimento da barragem em Brumadinho vem impactando na saúde das pessoas em diversos momentos. “Primeiro, pela força da lama que matou 272 pessoas; segundo, pela contaminação da água e do solo que, a cada dia, vai revelando suas consequências; terceiro, pela tortura que é feita pela Vale durante o processo de reparação, causando o adoecimento mental de muita gente”, explicou. Para Andrioli, cada vez mais, se faz necessária uma política pública especial voltada para os atingidos por barragem. “O SUS precisa ser aperfeiçoado para atender esta população. Quero aproveitar para elogiar o papel da Fiocruz, nosso maior centro de excelência, que trabalha para salvar vidas. E quero dizer que só perde a luta quem a abandona, então, sigamos firmes nesta luta”, ressaltou.
A pesquisadora Ana Regina Machado, que integra o Observatório de Desastres da Mineração- Gestão de Risco e Direitos Humanos da Fiocruz Minas, falou sobre a importância de se construir estratégias no SUS para cuidar da saúde mental de pessoas atingidas pelo desastre da mineração. “É importante destacar que um contexto que produz mudanças drásticas no território, atinge um coletivo e por um tempo que se prolonga traz desafios imensos para o campo da saúde. O que fazer então? É fundamental evitar a medicalização da população para um problema que é político, social e econômico. As consultas e medicamentos são importantes, fazem parte de um processo de cuidado, mas, por si só, não cessarão um sofrimento dessa complexidade”, salientou.
Segundo a pesquisadora, as experiências de Brumadinho e Mariana têm sido estudadas e já apontam alguns aprendizados sobre o que pode ser feito, como as seguintes: reorganização da saúde mental, ampliando horário de atendimento e incrementando essa rede; criação de serviços novos e itinerantes; ampliação do número de equipes e investimento na formação dos profissionais; garantia de condições de trabalho, bem ações voltadas para a promoção da saúde das equipes de profissionais; financiamento dos serviços pelas mineradoras, mas com coordenação do SUS; criação de estratégias coletivas e territoriais de cuidado, com a participação da comunidade, valorizando seus saberes; e apoio as lutas por justiça e pelo protagonismo dos atingidos. “Quero finalizar dizendo que, embora a gente não tenha política de saúde mental para o contexto de desastres, a existência de uma rede de saúde mental com diretrizes de atenção psicossocial favorece a organização de estratégias de cuidado diante de eventos com desastres. E, por fim, quero enfatizar a necessidade de um esforço compartilhado- e um exemplo é essa audiência-, envolvendo pessoas de diferentes áreas”, afirmou.
Também integrante do Observatório de Desastres da Mineração- Gestão de Risco e Direitos Humanos, o pesquisador Mariano Andrade da Silva apresentou um panorama da distribuição de barragens de rejeitos de mineração em Minas Gerais. De acordo com o pesquisador, há 331 barragens no estado, sendo que a maior parte delas está localizada na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e 51 estão classificadas com risco elevado de dano. Ainda conforme o pesquisador, as barragens com algum nível de risco estão distribuídas em 16 municípios mineiros. “No estado, há 16 municípios que possuem de 7 a 26 barragens. Quando você olha o raio de 1km, o número de municípios que podem ser atingidos por um rompimento aumenta, sendo que alguns deles não se beneficiam do processo de mineração”, explicou.
Mariano lembrou que um rompimento de barragem não se dá de forma pontual, mas gera efeitos a longo prazo e muitos desses efeitos se sobrepõem ao longo do tempo, gerando uma série de demandas para o SUS. O pesquisador também elencou alguns aprendizados a partir da observação do que foi realizado pelo SUS após os rompimentos ocorridos nos últimos anos. No que se refere ao cuidado integral aos afetados, destacam-se a estruturação de linhas de cuidado integral, o fortalecimento da rede de referência do SUS com pactuações interinstitucionais e a notificação de casos de intoxicação por metais, possibilitando também a realização de exames especializados. Como forma de se preparar para as emergências, é necessário desenvolver um plano municipal de respostas a desastres, com coordenação intersetorial.
Ainda durante o evento, também fizeram pronunciamentos a coordenadora-geral de Marcadores Sociais das Diferenças – Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), Ana Cecília Rodrigues dos Santos Godoi; o representante da Assessoria Técnica dos Indígenas Pataxó e Pataxó HãHãHãe – Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável – (Insea), Leandro de Souza Lopes; a coordenadora do Projeto Assessoria Técnica Independente na Bacia do Paraopeba do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), Marilia Andrade Fontes; e o representante do Conselho Estadual de Saúde, Júlio Cézar Pereira Souza.