Criado com o propósito de investigar aspectos das políticas de saneamento e de saúde mental, com ênfase na compreensão das desigualdades no acesso à água e ao esgotamento sanitário, o Grupo Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento (PPDH), da Fiocruz Minas, celebra, no mês de outubro, dez anos de atuação. Ao longo de sua trajetória, o grupo se consolidou como uma das principais referências nacionais na área, combinando produção científica, participação política e diálogo constante com a sociedade.
Coordenador do PPDH desde a sua fundação, o pesquisador Léo Heller explica que as ações do grupo se concentram em três grandes frentes: compreender o acesso das populações em situação de vulnerabilidade, como pessoas em situação de rua, comunidades quilombolas e indígenas, mulheres com deficiência ou privadas de liberdade; realizar análises críticas das políticas públicas, especialmente diante do avanço da privatização do setor de saneamento; e abordar a saúde mental das populações como políticas públicas e violação de direitos.
“Além da pesquisa, temos uma atuação política importante, participando de reuniões com o governo e contribuindo com debates e políticas públicas. Também somos chamados pela imprensa e por diferentes instituições, fruto de uma credibilidade construída ao longo dessa trajetória”, destaca Heller.
Conhecimento aplicado e compromisso social- Entre as ações recentes, o grupo lançou a cartilha Experiências sobre água e saneamento rural na América Latina e Caribe: aprendizados para a implementação das políticas no Brasil, disponível gratuitamente online. A publicação reúne reflexões e propõe caminhos práticos para fortalecer as políticas de saneamento rural, ainda marcadas por grandes desigualdades no país.
Outro destaque foi o estudo sobre a comunidade quilombola de Croatá, em Januária (MG), que analisou como fatores territoriais, como cheias e secas do Rio São Francisco, influenciam o acesso à água e ao saneamento. “As políticas voltadas para comunidades quilombolas precisam estar associadas ao território. Não basta avaliar o acesso a serviços de forma isolada”, explica Agda Marina Ferreira Moreira, autora da pesquisa, desenvolvida por meio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Fiocruz Minas.
O grupo também investigou o caso do município de Ouro Preto (MG), onde, desde 2019, a população se mobiliza contra a privatização dos serviços de água e esgoto. A pesquisa buscou compreender as representações sociais que influenciam a rejeição à empresa privada que assumiu o serviço. “A reação popular foi intensa e persistente. Queríamos entender a relação simbólica e afetiva que os moradores têm com a água e como isso se conecta à resistência à privatização”, explica Natália Onuzik, autora do estudo orientado por Léo Heller e Celina Modena.
Saneamento indígena em pauta- Outra frente importante de atuação do PPDH é a contribuição para a criação do Programa Nacional de Saneamento Indígena, desenvolvido pelo Ministério da Saúde. O grupo assessora tecnicamente a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e conduz dois projetos financiados pelo CNPq, voltados ao mapeamento de iniciativas e à avaliabilidade das ações no campo do saneamento indígena.
Os estudos têm revelado lacunas históricas e buscam garantir que as políticas sejam formuladas com base em dados e metodologia adequados. “Queremos que o futuro programa seja estruturado de forma coerente e passível de avaliação, para que cumpra efetivamente seus objetivos”, afirma o pesquisador Bernardo Aleixo, integrante do grupo.
Diversos estudos desenvolvidos pelo PPDH abordam, também, diferentes dimensões da desigualdade no acesso à água e ao saneamento. Um deles analisou a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), mostrando índices elevados de cobertura, mas com fortes disparidades entre os municípios. O levantamento originou uma plataforma online, integrada ao portal InfoSanBas, que permite acompanhar indicadores de saneamento em cada cidade da região.
Outras pesquisas apontam que a infraestrutura, embora necessária, não é suficiente para garantir o direito humano à água. É o caso do estudo realizado em Cristais (CE), que mostrou que, mesmo após obras de abastecimento, a comunidade ainda enfrentava problemas de qualidade e disponibilidade da água.
Em outra investigação, realizada em uma escola pública da Bahia, os pesquisadores identificaram que a simples presença de banheiros não assegura o cumprimento dos direitos humanos, especialmente para meninas e pessoas com deficiência. As condições precárias e a falta de privacidade comprometem o bem-estar e a permanência dos alunos.
Mais uma importante pesquisa desenvolvida pelo PPDH foi a que estabeleceu uma relação direta entre o acesso ao esgotamento sanitário e a redução de doenças como esquistossomose e ancilostomíase, com base em dados coletados ao longo de quase 70 anos.
“Confirmamos que o saneamento é um determinante essencial para a saúde. A ampliação desses serviços está associada à queda na prevalência dessas enfermidades”, afirma Mariana Cristina Silva Santos, autora do estudo.
Saúde mental e da formação de trabalhadores do SUS- O PPDH também tem se dedicado ao estudo e à implementação da política de saúde mental fundamentada na reforma psiquiátrica brasileira. Suas ações estão voltadas à formação de trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) para a consolidação do cuidado em liberdade, no território e em rede, princípios que visam à promoção da cidadania e da autonomia das pessoas em sofrimento mental.
Na perspectiva da formação, o PPDH, atuando no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, tem entre seus alunos majoritariamente trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e docentes de universidades públicas, o que reforça o vínculo entre a produção científica e as práticas cotidianas dos serviços de saúde mental. O PPDH mantém parcerias com secretarias municipais de saúde de diferentes municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte e com a Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (ESP-MG), contribuindo para o fortalecimento local das políticas de atenção psicossocial.
Segundo a pesquisadora Celina Modena, que coordena os estudos voltados para a área de saúde mental, as perguntas que orientam o trabalho do programa são: “como a formação pode ou não fortalecer ações de cuidado pautadas nos direitos humanos, na cidadania e na produção de subjetividades livres e circulantes? Como a formação contribui para a reforma psiquiátrica e a atenção psicossocial?
Entre os trabalhos realizados, destaca-se a tese de doutorado de Vivian Andrade Araújo Coelho, publicada no International Journal of Mental Health, que avaliou a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em Minas Gerais. A pesquisa mapeou os serviços de saúde mental no estado, analisou o processo histórico de implantação da rede no Brasil, desenvolveu um plano para a avaliação de sua implementação e examinou os contextos que influenciam a consolidação da RAPS em Minas Gerais.
Há ainda outras pesquisas desenvolvidas pelo PPDH que abrangem diferentes dimensões da saúde mental e da saúde do trabalhador. Entre elas, destaca-se o estudo de Natália Raquel Pereira Loures, que dá voz a usuários de Caps AD sobre o cuidado recebido; a dissertação de Rosângela Rodrigues Morais, voltada ao atendimento de crianças e adolescentes em crise; e a de Anna Laura de Almeida, que analisa as práticas de cuidado em Centros de Referência em Saúde Mental. Na área da saúde do trabalhador, sobressaem os trabalhos de Fernanda Freire Fonseca, sobre os impactos da informatização do sistema judiciário, e de Geferson André Silva, que investigou os riscos no trabalho com minerais radioativos, além de um estudo sobre a saúde de homens com filhos com transtorno do espectro autista.
Interdependência dos direitos- A relação entre os direitos humanos é outro tema explorado pelo grupo. Um dos estudos abordou a população em situação de rua de Belo Horizonte, mostrando como a falta de acesso à água e ao saneamento compromete outros direitos fundamentais, como os de saúde, educação e privacidade. “Quando não têm onde tomar banho, essas pessoas deixam de ir à escola ou de procurar atendimento de saúde”, relata a pesquisadora Priscila Neves, que esteve à frente do estudo.
Também nesse sentido, Heller elaborou, para as Nações Unidas, o relatório “Igualdade de gênero e direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário”, destacando como a falta de infraestrutura impõe cargas desproporcionais a mulheres e meninas, que muitas vezes precisam buscar água em locais distantes e inseguros, o que reforça desigualdades econômicas e de gênero.
A trajetória do PPDH também é marcada pela atuação internacional de Léo Heller, que foi relator especial da ONU para os direitos humanos à água e ao saneamento entre 2014 e 2020. O trabalho resultou no livro The Human Rights to Water and Sanitation, publicado pela Cambridge University Press, que reúne análises elaboradas ao longo de seis anos de atuação em diferentes países.
Com uma década de atuação marcada pela produção de conhecimento, engajamento social e defesa dos direitos humanos, o PPDH reafirma seu compromisso com a promoção da justiça social, equidade e saúde pública.