Um estudo da Fiocruz Minas analisou como é o acesso à água e ao saneamento básico dos moradores da comunidade quilombola de Croatá, situada às margens do Rio São Francisco, no município de Januária, região Norte de Minas Gerais. O principal diferencial da pesquisa foi incluir nas análises uma série de questões relacionadas ao território, como as cheias do rio, os períodos de seca e as disputas territoriais, situações que impõem mudanças nos modos de vida dessa população e impactam significativamente no acesso aos serviços.
“A principal conclusão a que chegamos por meio da pesquisa é que as políticas de saúde voltadas para as comunidades quilombolas devem estar associadas ao território. Não se pode analisar só o acesso a serviços, desvinculado das questões que afetam o território. É preciso considerar aspectos subjetivos e entender como as pessoas lidam com as diferentes situações que se apresentam naquela comunidade”, explica Agda Marina Ferreira Moreira, que desenvolveu o estudo durante o doutorado realizado por meio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Fiocruz Minas, sob orientação do pesquisador Léo Heller. A defesa da tese ocorreu recentemente e contou com a presença de um integrante do movimento quilombola, que participou da banca examinadora, e de moradores da comunidade.
Segundo a pesquisadora, o território da comunidade de Croatá foi escolhido como local de realização do estudo devido à intensificação de conflitos territoriais ocorridos em 2021, provocada por uma das maiores cheias do rio São Francisco. Para fazer o estudo, Agda frequentou a comunidade ao longo do ano de 2023, com o objetivo de observar as relações dos moradores com o rio São Francisco e os diferentes usos e acesso à água e ao esgoto, bem como compreender o processo de reocupação do território e as implicações desses processos na vida cotidiana. Além disso, foram realizadas entrevistas com dez moradores da comunidade, selecionados por terem participação ativa durante a reocupação do território tradicional e também pela indicação de lideranças.
Resultados- No que diz respeito ao acesso à água, o estudo verificou que a comunidade não possui acesso à rede de abastecimento oficial. Assim, os moradores utilizam caixas de captação de água da chuva, sendo que, nos períodos de longa estiagem, solicita-se um caminhão pipa à Defesa Civil para abastecer esses recipientes. Já os moradores que não dispõem de caixa buscam água na cidade e acondicionam em tambores e bombonas. De acordo com a pesquisa, não existe nenhuma análise para avaliar a qualidade dessa água que está sendo consumida por eles. Outro aspecto verificado é que, embora haja o entendimento de que a água do rio não é apropriada para beber, as pessoas a utilizam para preparar alimentos, tomar banho e lavar vasilhas, podendo gerar algum tipo de contaminação.
Em relação ao saneamento, a pesquisa constatou que, assim como na maior parte das comunidades quilombola localizadas em zona rural, os moradores de Croatá não dispõem de rede de esgoto. A maioria das casas possui a chamada ‘fossa ecológica’, tecnologia social de baixo custo, que utiliza pneus usados para infiltração dos efluentes. A fossa ecológica foi implementada pelas lideranças comunitárias, por meio de um intercâmbio realizado com uma comunidade pesqueira de outra região. Ou seja, foi uma solução que partiu da comunidade, e não do poder público. O estudo destaca que uma das causas dessa situação é que, embora o acesso ao saneamento básico seja considerado um direito humano, tal prerrogativa tem sido tratada como mercadoria. Recentemente, o Brasil ampliou a possibilidade de privatizar os serviços de saneamento. “Este ponto é central para pensarmos a disponibilidade desses serviços para a população rural e para populações em maior vulnerabilidade social, já que, para o mercado, esse público não é interessante em termos de números, uma vez que é uma população bem reduzida, se comparada à população residente nas cidades”, salienta a pesquisadora.
Outro ponto verificado foi o acesso a banheiros, buscando não apenas quantificar os domicílios que possuem as instalações, mas também identificar as condições delas. O estudo constatou que, das 32 residências da comunidade, 24 dispõem de banheiro, mas a maior parte em condições precárias. Apenas três deles possuem infraestrutura adequada, ou seja, dispõem de vaso sanitário, chuveiro e pia. Com vaso sanitário e chuveiro, são apenas seis; e um total de 14 possuem somente o vaso sanitário.
Nas casas em que os banheiros não possuem água canalizada, a higienização é feita em área aberta, geralmente nos quintais ou diretamente no rio, indicando a precariedade da promoção da higiene. Outra situação verificada é a prática de guardar água em reservatórios expostos nos quintais das casas, expondo os quilombolas a diversas doenças transmitidas por vetores, como é o caso das arboviroses.
Assim como no caso da água, o acesso a banheiro também sofre influências conforme a época do ano. Durante a última cheia do rio, por exemplo, ocorrida em 2022, a comunidade precisou se abrigar em acampamentos de lonas, sem acesso a banheiros, passando por uma série de constrangimentos, principalmente as mulheres.
Corpo-território- Além de avaliar o acesso da comunidade Croatá à água e ao saneamento básico, o estudo também aplicou uma metodologia chamada Corpo-Território, que consiste na realização de grupos focais com os moradores, em que a partir do debate de temas específicos, os participantes conseguem identificar os impactos dessas questões em seus corpos.
Entre os resultados, constatou-se que a saúde mental é um dos pontos que merecem atenção, com relatos de depressão, falta de sono e preocupação. O uso excessivo de álcool e outras drogas, sobretudo entre os mais jovens, também é notável, o que, conforme o estudo, talvez se deva à falta de perspectiva e de qualidade de vida, devido à ausência de espaços de cultura, lazer e infraestrutura adequada, entre outros aspectos. A última enchente também é apontada por uma das lideranças como uma das causas de adoecimento mental por parte dos moradores, o que revela a demanda por atendimentos psicossociais.
Outro aspecto presente nas narrativas é o sentimento de solidão entre os idosos, que pode ser atribuído a dois fatores: a ausência do poder público e a não permanência de jovens na comunidade. Ou seja, a inexistência de infraestrutura e serviços básicos adequados, como, por exemplo, energia elétrica, faz com que os mais jovens queiram deixar a comunidade. Segundo o estudo, isso é agravado pela falta de geração de renda e melhores oportunidades.
Também chamou atenção durante as discussões a percepção por parte dos moradores de que, sem o acesso ao território, não há autonomia e liberdade. Os quilombolas relatam não se sentirem à vontade em seus territórios, pois pessoas que disputam o espaço com eles estão sempre transitando pela comunidade. Há relatos de que um grupo de posseiros residente no território tem desmatado deliberadamente as áreas de mata da comunidade.
O estudo também ressalta que parte da comunidade tem seu sustento baseado no rio, sendo que o não acesso a ele, seja por contaminação seja por disputas territoriais, pode reverberar não somente nos modos de vida, mas também no acesso ao alimento e à geração de renda dos quilombolas. A contaminação do solo também é um aspecto que afetou muito a comunidade após a última enchente, causando a perda de plantações e árvores frutíferas e impossibilitando a comunidade de plantar há dois anos.
As narrativas trazidas durante as rodas de conversa também mostram que, para os quilombolas, bem-estar tem relação com uma infraestrutura básica, vinculadas a direitos fundamentais, como ter o que comer, e que isso seja alcançado coletivamente.
A pesquisa destaca que, ao propor qualquer política pública para os povos quilombolas, é preciso considerar as formas de convivência, os olhares e percepções dos próprios quilombolas sobre seu território. Além disso, reforça a necessidade de romper com sistemas e conceitos generalizantes, uma vez que, apesar de seus aspectos comuns, cada comunidade é única em suas demandas, especificidades e atribuições. O estudo ressalta ainda a importância de legitimar e garantir o lugar de fala das pessoas que vivem na comunidade, contribuindo para a descolonização de referências e para a amplitude de referenciais construídos pelos sujeitos historicamente subalternizados, promovendo uma ‘justiça cognitiva’.
Para a moradora Maria das Dores Pereira da Silva, uma das lideranças da comunidade Croatá, foi muito bom ter uma pesquisadora da Fiocruz acompanhando a rotina do quilombo e identificando direitos que lhes estão sendo negados. “A nossa comunidade é muito carente e tudo o que a gente consegue aqui é com muita luta. Então, ter a Fiocruz aqui, essa instituição que é tão importante, foi muito bom. A Agda veio fazer a devolutiva e ficamos muito agradecidos. A gente espera que seja possível avançar nas nossas lutas e melhorar as nossas condições”, disse.
Também moradora da comunidade Croatá, Enedina Souza dos Santos ressaltou a importância do estudo na busca pela garantia dos direitos. “Aqui, a gente sempre correr atrás, e a pesquisa fortalece a nossa luta. Queremos avançar para ter acesso ao que é garantido pela Constituição, e tudo isso que foi mostrando no estudo vai nos ajudar a conseguir”, destacou.
Os resultados da pesquisa estão descritos em dois artigos, disponíveis no repositório Arca da Fiocruz:
Confluências quilombolas: o caso da comunidade de Croatá(MG)