Por: Observatório em Desastres da Mineração, Gestão de Riscos e Direitos Humanos da Fiocruz Minas
No dia 5 de novembro de 2015, o Brasil assistia ao maior desastre socioambiental de sua história recente: o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, da mineradora Samarco — controlada pela Vale e pela BHP Billiton — em Mariana (MG). A enxurrada de rejeitos destruiu o distrito de Bento Rodrigues e se espalhou por mais de 600 km até alcançar o oceano Atlântico, arrastando consigo vidas, histórias e ecossistemas inteiros.
O rompimento da barragem ultrapassou a dimensão ambiental, revelando fragilidades das políticas públicas na compreensão dos riscos e na atuação preventiva, de resposta e de recuperação. Esse cenário ameaça não apenas as pessoas atingidas diretamente pela lama, mas o território em sua totalidade.
O rompimento da barragem de Fundão não foi um evento isolado mas a expressão de um modelo de exploração mineral que coloca o lucro acima da vida e da natureza. Sustentado pela fragilidade da fiscalização pública e pela captura das políticas ambientais, esse modelo repete padrões históricos de negligência e impunidade. O desastre representa um retrato das falhas estruturais de um sistema que transfere responsabilidades do Estado para as próprias empresas, enfraquecendo os mecanismos de controle, fiscalização e proteção ambiental.
Dez anos depois, as cicatrizes e fraturas seguem abertas. Nos 38 municípios de Minas Gerais e 11 do Espírito Santo, os impactos permanecem inscritos no cotidiano das populações atingidas e afetadas, que ainda convivem com os efeitos da contaminação, com o comprometimento da qualidade da água, da saúde e dos modos de vida de milhares de pessoas. Comunidades tradicionais perderam seus territórios e referências culturais; famílias seguem sem reparação integral; e o ecossistema do Rio Doce ainda luta para se regenerar. A lentidão dos acordos, a fragmentação das respostas institucionais e a ausência de políticas públicas efetivas evidenciam o quanto o país ainda não construiu uma governança capaz de colocar a proteção das vidas acima da lógica predatória da mineração.
Ao longo dessa década, multiplicaram-se relatórios, diagnósticos, comissões e audiências públicas. Importantes, sem dúvida! No entanto, o que deveria representar um processo de reconstrução e justiça converteu-se em um campo de disputas assimétricas, em que a voz das comunidades continua ofuscada por interesses econômicos. É preciso reafirmar que a reparação integral não é um favor, mas um direito, e que somente a escuta ativa dos atingidos, o fortalecimento das assessorias técnicas independentes e o controle social permanente poderão assegurar processos de justiça efetivos e transformadores.
A data de hoje nos convoca à memória e à ação. Relembrar as 19 vidas perdidas em Bento Rodrigues é também reconhecer as milhares de outras afetadas de forma silenciosa ao longo desses anos. É fundamental continuar ouvindo os atingidos e afetados, fortalecer o controle social, aprimorar a vigilância em saúde e ambiental, punir quem precisa ser punido, para que desastres como esse jamais se repitam. A memória do desastre de Fundão deve servir como guia para transformar dor em ação, e injustiça em compromisso socioambiental.
Em 2024, a assinatura do Acordo da Bacia do Rio Doce, homologado pelo Supremo Tribunal Federal, marcou um passo importante na reconstrução da confiança e da capacidade de resposta do Estado brasileiro. No que diz respeito à saúde, esse Acordo tem como perspectiva o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) nos municípios atingidos, a partir de investimentos em infraestrutura, vigilância e atenção em saúde integral, entre outras medidas. Nesse contexto, Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) firmaram acordo de cooperação que conta com estudos de longo prazo sobre os impactos do desastre na saúde e no meio ambiente, consolidando a ciência pública como base da reparação, da prevenção e da proteção de vidas.
Nós do Observatório de Desastres da Mineração, Gestão de Riscos e Direitos Humanos da Fiocruz Minas entendemos que dez anos depois, lembrar é um ato de luta, justiça, resistência e compromisso com o futuro das pessoas e do nosso Rio Doce.