Estudo avalia impacto da leishmaniose cutânea na qualidade de vida dos pacientes

Os impactos da leishmaniose cutânea, uma das doenças tropicais negligenciadas mais comuns no Brasil, vão além das feridas visíveis na pele, segundo um estudo da Fiocruz Minas. A pesquisa avaliou a qualidade de vida de pessoas em tratamento, analisando não apenas a evolução clínica, mas também aspectos do cotidiano, como limitações físicas, impactos financeiros e estado emocional. Os resultados mostraram que, embora haja melhora nas condições físicas e funcionais do paciente após o tratamento, muitas pessoas continuam enfrentando desafios que afetam seu bem-estar emocional e social.

O estudo acompanhou 143 pacientes em tratamento no Centro de Referência em Leishmanioses da Fiocruz Minas, entre 2020 e 2023, dos quais 120 completaram todas as etapas de avaliação. Foram aplicados questionários em três momentos: antes do início do tratamento, durante a terapia e após a conclusão. Segundo as análises, 85% dos pacientes relatavam impacto negativo significativo na saúde, antes do início do tratamento. Após a conclusão, esse percentual caiu para 44,1%. As dificuldades mais relatadas antes do início do tratamento envolviam atividade física, citada por 51,6% dos pacientes, e capacidade de trabalho ou estudo, mencionada por 50% das pessoas. Após a conclusão do tratamento, o percentual de pessoas que relatam problemas com atividade física foi a 20, 8%, e o de pacientes com capacidade de trabalho ou estudo afetada caiu para 22,5%.

Mesmo com a melhora geral observada em vários aspectos, o estudo chama atenção para a persistência de problemas socioeconômicos e emocionais. O ônus financeiro e o estigma social foram citados como fatores que continuam prejudicando a qualidade de vida, especialmente em regiões mais vulneráveis. Prejuízos financeiros foram citados por 35,8% dos pacientes antes do tratamento e por 28,3%, após a finalização. Entre os que se sentiam constrangidos devido a feridas na pele, eram 39,2%, antes do tratamento, e 29,2%, após a conclusão.

De acordo com a pesquisadora Sarah Nascimento Silva, uma das responsáveis pelo estudo, a leishmaniose cutânea pode causar feridas em diferentes partes do corpo, e quando afeta a mucosa do nariz, boca ou garganta, as consequências são ainda mais graves. “Os acometimentos mucosos interferem na fala, na alimentação e na respiração. São casos mais crônicos, com grande impacto no cotidiano”, relata a pesquisadora. As lesões também podem comprometer a capacidade de trabalhar, especialmente entre pessoas que exercem atividades manuais. “Quando a ferida está no braço, por exemplo, o paciente muitas vezes precisa interromper o trabalho. Isso afeta diretamente a renda, porque alguns deles trabalham de forma autônoma ou na área de agricultura”, explica. Além dos impactos financeiros, as limitações físicas repercutem também no campo emocional. “O paciente chega a dizer: ‘fiquei parado, não tive como trabalhar’. Essa perda de autonomia gera sofrimento e pode prolongar o impacto da doença, mesmo após o tratamento clínico”, completa Sarah.

Metodologia- Um dos diferenciais do estudo foi o uso do Cliq (Cutaneous Leishmaniasis Impact Questionnaire), instrumento desenvolvido e validado pelo grupo Pesquisa Clínica e Políticas Públicas em Doenças Infecto-Parasitárias da Fiocruz Minas, para avaliar especificamente a qualidade de vida de pessoas com leishmaniose. “Existem questionários genéricos para medir qualidade de vida, mas o Cliq é direcionado à leishmaniose. Ele traz perguntas específicas sobre as consequências da doença, o que torna a avaliação mais precisa”, destaca Sarah.

Segundo ela, o grupo da Fiocruz Minas vem trabalhando há anos no desenvolvimento e na aplicação de instrumentos que permitam compreender de forma mais ampla o impacto da doença na vida das pessoas. “Agora conseguimos coletar e aplicar o formulário de forma sistematizada, o que representa um avanço importante para a pesquisa em leishmaniose”, afirma a pesquisadora.

Os resultados reforçam a necessidade de que o atendimento aos pacientes com leishmaniose envolva equipes multiprofissionais, com atenção não apenas aos sintomas clínicos, mas também ao bem-estar emocional e social. “É importante propor protocolos que considerem a perspectiva do paciente, o que ele espera do tratamento. Conversar, ouvir e tomar decisões de forma compartilhada ajudam a acolher melhor e a enfrentar as dificuldades que vão além da ferida”, defende a pesquisadora.

Para Sarah, o estudo evidencia a urgência de elaboração de políticas públicas que ampliem o olhar sobre o tratamento. “Mesmo quando o paciente é curado, ele continua convivendo com questões que exigem acompanhamento psicológico e social. Pensar em estratégias que aproximem o cuidado das realidades locais, reduzindo deslocamentos e custos, também pode ajudar a minimizar esses impactos”, diz.

Ao colocar o foco na percepção dos pacientes, o estudo reforça a necessidade de compreender os reflexos da doença na vida cotidiana e buscar caminhos que promovam o bem-estar integral. “A leishmaniose cutânea deixa marcas que não são apenas na pele. Entender o que o paciente sente, espera e vivencia é essencial para melhorar o cuidado e orientar novas estratégias de enfrentamento da doença”, destaca a pesquisadora.

Publicado na revista PlosOne, o trabalho foi premiado durante 6º Congresso da REBRATS, evento que é referência nacional na área da Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS).