Fiocruz Minas realiza seminário sobre pesquisas e desafios no enfrentamento ao feminicídio

O grupo de pesquisa Violências, Gênero e Saúde (VGS) da Fiocruz Minas promoveu, nos dias 2 e 3 de setembro, o seminário Pesquisas para o Enfrentamento do Feminicídio no Brasil: contexto atual e desafios. O evento reuniu pesquisadores, profissionais que atuam em redes de serviço de atendimento às mulheres, gestores, membros do poder legislativo, representantes de movimentos sociais, entre outras pessoas que trabalham com o tema, para discutir estratégias de combate a uma das mais graves formas de violência contra as mulheres.

Durante a abertura, a pesquisadora Paula Bevilacqua, coordenadora do grupo VGS, deu as boas-vindas aos participantes e destacou a motivação para a realização do encontro. “A ideia foi organizar um evento que pudesse trazer pessoas de diferentes segmentos para conversar sobre o tema e trabalhar de uma forma mais coletiva e, consequente, de modo a influenciar políticas públicas e intervenções”, afirmou a pesquisadora, ressaltando que, embora existam estudos, pesquisas e ações em andamento, essas atividades ainda parecem desarticuladas. Paula também falou sobre a importância de os estados aderirem ao Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios, lançado pelo governo federal em 2023. “Minas Gerais é o segundo estado com o maior índice, atrás apenas de São Paulo, e, infelizmente, ainda não aderiu ao pacto, um dos pontos da nossa discussão hoje. Essa adesão é fundamental para que o estado possa receber recursos e investir no enfrentamento do problema”, explicou.

A pesquisadora Carmen Sant Fruchtman, do Instituto Suíço de Pesquisa em Saúde Pública, ressaltou a importância das parcerias e da troca de experiências. “O feminicídio é um problema internacional, que ocorre mesmo nos países mais ricos. Às vezes, ele fica mais invisível, menos reconhecido social e politicamente, mas ocorre em todos os lugares. Por isso, esse evento é bastante interessante para avaliarmos como podemos continuar construindo parcerias locais, nacionais e internacionais para combater o feminicídio em todos os lugares do mundo. Essas colaborações entre pesquisa, política pública e movimentos sociais são muito especiais”, disse.

Representando a diretora da Fiocruz Minas, o vice-diretor de Ensino, Informação e Comunicação, Sérgio Viana Peixoto, chamou atenção para os desafios de se discutir um tema tão complexo. “O feminicídio, no meu entendimento, é o evento mais catastrófico de toda essa desigualdade e violência que a gente vive. Então, eu queria ressaltar a extrema relevância desse evento, pois, como a gente sabe, ter uma política não é suficiente. É importante discutir como avançar nessas questões”, afirmou.

Representando a Presidência da Fiocruz, a coordenadora de Estratégias de Integração Regional e Nacional da Fundação, Zélia Profeta, destacou a atuação institucional no fortalecimento de redes de enfrentamento. “Estamos em 12 estados e, desde o ano passado, organizamos uma rede dentro da instituição para atuar junto ao Ministério das Mulheres. Neste ano, decidimos fortalecer a rede envolvendo os 12 estados no enfrentamento ao feminicídio e trabalhando de forma mais organizada junto aos movimentos sociais e instituições locais. Para a Presidência da Fiocruz, essa é uma ação urgente e fundamental. A ideia é aproveitar a força e a potência da Fundação em seus territórios para contribuir de forma efetiva nessa luta”, afirmou.

Parlamentares presentes no evento também fizerem seus pronunciamentos. A vereadora Cida Falabela criticou a não adesão de Minas Gerais ao Pacto Nacional Contra o Feminicídio e defendeu que a responsabilidade pelo enfrentamento à violência contra a mulher é coletiva. Para a vereadora, além de leis e protocolos, é fundamental investir em educação não sexista.

A deputada estadual Beatriz Cerqueira enfatizou a importância de disputar espaços de poder para enfrentar a violência de gênero. Segundo ela, “parlamentos não são lugares acessórios de luta”, já que é onde se define orçamento e políticas públicas. A parlamentar lembrou que Minas é também campeão em violência política de gênero e defendeu ações mais firmes para enfrentar o feminicídio, considerado por ela uma epidemia.

Já a deputada Bela Gonçalves criticou os cortes orçamentários do governo estadual em políticas voltadas para as mulheres e a ausência do estado de Minas Gerais no pacto nacional, afirmando que a segurança das mulheres não pode ser tratada como “apêndice”. A deputada reforçou que sem investimentos em saúde, segurança e moradia, o ciclo de violência continuará vitimando principalmente mulheres negras.

Mesa Pacto Nacional – Representando o Ministério das Mulheres, a secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, Estela Bezerra, destacou que o feminicídio representa a “última fronteira de uma situação sistêmica” que atravessa todas as mulheres. “A gente costuma perguntar qual é a mulher que não viveu algum tipo de violência, mas, a meu ver, só aquela que não tem consciência sobre determinadas formas de violência”, afirmou. Para ela, desde o nascimento, quando se constitui enquanto sujeito de um corpo feminino, a mulher é submetida a normas e disciplinas que comprimem seu comportamento, reforçando um sistema estruturante que precisa ser transformado.

Estela chamou atenção para a crueldade presente nos crimes contra mulheres, lembrando que 64% das agressões miram o rosto das vítimas. “Nenhuma mulher é executada com um tiro apenas ou com uma facada. São 12 facadas. O rosto tem que ficar desfigurado. É usado fogo e ácido para não só matar, mas destruir completamente o corpo”, ressaltou. Segundo a secretária, esses crimes têm o efeito simbólico de intimidar outras mulheres que ousam dizer não, reproduzindo a lógica da superioridade masculina.

Ao tratar das políticas públicas, ela resgatou a trajetória histórica de conquistas, como a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, e enfatizou a importância do Pacto Nacional de Prevenção à Violência contra as Mulheres, coordenado pelo Ministério. “O pacto é a estratégia de governo que visa envolver municípios, estados, União, legislativo, judiciário e sociedade civil em ações de enfrentamento à violência de gênero”, explicou.

A coordenadora do Observatório da Mulher contra a Violência do Senado Federal, Maria Teresa Prado, destacou a trajetória da instituição e sua relevância no enfrentamento à violência contra as mulheres. Ela lembrou que o Observatório foi criado em 2016 como resposta ao relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher, e está vinculado ao Instituto do Senado. Desde então, vem acompanhando pesquisas iniciadas em 2005, que investigam a percepção e a vivência das mulheres em relação à violência. “Em outubro de 2025 vamos lançar a décima primeira edição dessa pesquisa, completando 20 anos de acompanhamento contínuo. Já entrevistamos mais de 54 mil mulheres, em levantamentos totalmente probabilísticos e anônimos, o que garante segurança e rigor estatístico aos dados”, explicou.

Ela ressaltou que os resultados dessas pesquisas têm permitido análises profundas, inclusive por estado, e revelam aspectos essenciais para o desenvolvimento de políticas públicas. Maria Teresa também destacou a criação do Mapa Nacional da Violência de Gênero, plataforma desenvolvida a partir de parcerias entre o Senado, organizações da sociedade civil e institutos de pesquisa. O objetivo é reunir informações de diferentes bases, como segurança pública, saúde e justiça, de forma acessível e atualizada, oferecendo uma visão integrada sobre a situação da violência contra mulheres no Brasil.

Outro ponto enfatizado foi a importância das articulações institucionais. Ela lembrou que, em parceria com a Fundação João Pinheiro, o Ministério das Mulheres e outros atores, foi criada a Rede de Observatórios da Mulher, que já reúne cerca de 60 iniciativas em todo o país. “Acreditamos muito na força dos dados locais, das pesquisas regionais, que quando ganham visibilidade nacional contribuem para ampliar o debate e fortalecer a formulação de políticas”, disse Maria Teresa, ressaltando que o trabalho em rede e as parcerias são fundamentais para dar visibilidade às informações produzidas.

Representando a Defensoria Pública de Minas Gerais, a defensora Samantha Vilarinho destacou o levantamento feito em todo o país sobre o funcionamento dos processos de medidas protetivas de urgência. Segundo ela, a pesquisa revelou uma grande disparidade: “cada estado, cada juízo, cada comarca funciona de um jeito diferente”, explicou. Essa falta de uniformidade gera insegurança jurídica, já que não há clareza sobre prazos, direito de defesa, realização de audiências ou mesmo sobre a existência de decisões de mérito. Para enfrentar essa lacuna, um grupo nacional elaborou diretrizes que, segundo Samantha, buscam orientar a atuação do Judiciário. “O ideal seria termos uma lei que estabelecesse um procedimento comum, mas, diante da dificuldade de avançar no Congresso, optamos por construir um documento que possa resultar em uma recomendação e, futuramente, em uma resolução obrigatória para juízes e juízas”, afirmou.

Ela ressaltou ainda a necessidade de fortalecer iniciativas como as Casas da Mulher Brasileira, espaço especializado no atendimento a mulheres em situação de violência. Outro desafio, segundo a defensora, é garantir a chegada das mulheres aos serviços, já que muitas das vítimas de feminicídio nunca buscaram medidas protetivas. Nesse sentido, ela destacou iniciativas como a formação de defensoras populares em Minas Gerais, que capacita lideranças comunitárias para atuarem como multiplicadoras dos direitos humanos das mulheres em seus territórios.

Outro exemplo citado foi o protocolo nacional de atuação das defensorias públicas com perspectiva de gênero, raça, etnia e outros marcadores sociais, que já resultou em enunciados voltados para diferentes áreas do direito. Apesar dos avanços, Samantha reconheceu as limitações estruturais: “se hoje já não conseguimos atender plenamente às mulheres que chegam, imagine se todas conseguissem acessar os serviços”, alertou, defendendo mais investimentos, orçamento e defensoras especializadas para consolidar os progressos e avançar no enfrentamento à violência.

A pesquisadora da Fiocruz Minas, Paula Bevilacqua, coordenadora do grupo VGS, destacou a importância do trabalho coletivo para o enfrentamento da violência contra as mulheres: “A violência não é um fenômeno banal. Ainda que ela seja banalizada, não é um fenômeno banal para ser tratado, do ponto de vista das instituições públicas, que têm que ter esse compromisso de promover, investir e formular políticas que visem ao enfrentamento e à redução dos índices de violência”, disse. Ela ressaltou que ações eficazes só são possíveis com a articulação entre diferentes setores, como saúde, justiça, segurança pública e educação: “Isso não se faz de outra forma, que não seja de forma coletiva. Um único órgão sozinho, uma única instância, não vai dar conta de resolver o problema da violência. E é por isso que é importante fazer esse debate procurando promover o encontro de pessoas desses diferentes órgãos”, afirmou.

Destacando a importância da constituição de redes para o enfrentamento da violência, a pesquisadora citou a experiência do grupo VGS no município de Belo Horizonte. “Participamos recentemente da formalização da rede de serviços de Belo Horizonte, a Rede BH, que já existia de maneira informal, e dentro dessa experiência, pudemos contribuir com a elaboração de um protocolo de atendimento às mulheres em situação de violência em Belo Horizonte, possibilitando o encontro da academia com o desenvolvimento da política pública. Ou seja, o conhecimento que a gente produz por meio da pesquisa contribuiu para a elaboração da política pública e, agora, vamos trabalhar com a rede no monitoramento do protocolo”, contou Paula, lembrando que o pacto nacional de enfrentamento ao feminicídio traz como eixos transversais a produção de dados, de documentos e de conhecimentos, que são aspectos diretamente associados à pesquisa.

Ela reforçou que o conhecimento produzido a partir de dados e sistemas de informação é fundamental para compreender, por exemplo, por que mulheres em situação de violência não chegam aos serviços e para orientar intervenções: “Entender por que as mulheres não chegam, passa por uma parceria com pesquisadores e pesquisadoras, que são perguntas que nós nos fazemos também”, destacou.

A pesquisadora abordou, ainda, a complexidade da violência e os desafios de prevenção: “A violência física é uma situação um pouco mais contundente, mas dependendo da violência, a violência psicológica, moral, patrimonial, são formas que podem se intercalar, resultando nesse evento que é o feminicídio”. Para ela, a pesquisa participativa permite transformar práticas institucionais e gerar mudanças de comportamento: “Ao fazer a pesquisa, a gente vai implicando as pessoas que estão participando da pesquisa e participam eventualmente da execução da política”. Segundo Paula, “a articulação entre ciência, políticas públicas e serviços é o caminho mais consistente para prevenir um feminicídio e fortalecer a proteção das mulheres”.

Sintetizando as questões abordadas durante as apresentações, a mediadora Isabella Vitral, do grupo VGS, ressaltou a complexidade de articular políticas que contemplem a diversidade das mulheres e dos territórios. “Como articular esses diferentes atores na produção desse plano, para que ele realmente represente a diversidade, tanto dos territórios, dos Estados, quanto a diversidade das mulheres e dos diferentes marcadores sociais da diferença dessas mulheres?”, indagou.

Ela também destacou os desafios orçamentários e estruturais para atender mulheres em situação de violência. “Há recursos previstos para a ampliação de centros de referência ou para a criação de casas-abrigo que estão no limite há muito tempo?”, questionou, chamando atenção para a necessidade de investimentos concretos.

A pesquisadora reforçou ainda a importância de transformar dados e evidências em políticas públicas efetivas. “O desafio é traduzir esse conhecimento em atuação articulada junto ao Legislativo, ao Executivo e ao sistema de Justiça, para além da produção de evidências, fazer produção de política e mudança real na vida de mulheres e na vida da nossa sociedade como um todo”, concluiu.