O conhecimento tradicional das comunidades quilombolas ocupou um espaço de destaque no 11º Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Sociedade, realizado entre os dias 17 e 19 de setembro de 2025, na Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém. O evento, promovido pela Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (Esocite.br), teve como tema central Que futuro estamos construindo? Ciência, tecnologia e a urgência da ação climática e buscou ampliar o debate sobre os desafios socioambientais do presente e do futuro.
Uma das discussões foi marcada pelo protagonismo de lideranças quilombolas. Maria Aparecida Machado, conhecida como Nenga, liderança do Quilombo do Córrego do Narciso, no Vale do Jequitinhonha (MG), compôs a mesa-redonda Que futuro plantamos? A mandioca como mediadora na produção de conhecimento, memórias e na construção de outros ‘amanhãs’ em comunidades quilombolas e aglomerados urbanos. A participação de Nenga foi resultado de uma parceria entre a comunidade e o grupo Pesquisa Clínica e Políticas Públicas em Doenças Infecto-Parasitárias (PCPP) da Fiocruz Minas, que tem atuado no fortalecimento dos saberes quilombolas e na valorização de suas práticas de cultivo, manejo e saúde.
Segundo a pesquisadora Polyana Valente, integrante do PCPP, a presença de Nenga simboliza uma mudança de perspectiva na relação entre academia e comunidades tradicionais. “Nossa preocupação desde o início foi criar espaços em que as próprias lideranças falem por si. Nos artigos, nas pesquisas e também nos congressos, buscamos garantir a autoria dessas mulheres, que são nossas grandes parceiras. É a segunda vez que convidamos uma liderança quilombola como conferencista, porque acreditamos que elas devem narrar suas próprias histórias, paixões e projetos”, explica.
No caso específico da mesa sobre a mandioca, a escolha não foi por acaso. O alimento é considerado um elo de resistência, memória e coletividade nas comunidades quilombolas. A pesquisadora Flora Rodrigues Gonçalves, também do PCPP, destaca que a produção da farinha, o beju e outros derivados mobilizam redes de trabalho feminino e fortalecem vínculos sociais. “A mandioca é um território de reciprocidade. Mesmo quem não planta participa do processo, seja na colheita, na torra ou na partilha. É um trabalho coletivo que gera alimento, renda e memória. Além disso, é um cultivo resiliente, que resiste à seca e às pressões do agronegócio e da mineração, permanecendo como símbolo de autonomia”, afirma.

Para Nenga, a participação no simpósio foi bastante positiva. “Foi muito bom. Me senti à vontade, não vi problema nenhum em falar na mesa, foi muito tranquilo. Falei como funciona o processo da mandioca, desde o começo da plantação até chegar ao ponto da farinha. Me senti muito bem, graças a Deus”, contou.
Além da apresentação de Nenga, o grupo também levou ao simpósio trabalhos em parceria com o Cefet-MG e coordenou atividades temáticas voltados para ciência, saúde e sociedade. Para Polyana Valente, ampliar o conceito de ciência é um dos objetivos centrais da participação no simpósio. “Defendemos que esse fazer quilombola é ciência. O cultivo da mandioca, a partilha do trabalho e a transmissão de saberes que atravessam gerações configuram uma tecnologia social que precisa ser reconhecida”, ressalta.

Outras ações- Desde 2022, o grupo PCPP vem desenvolvendo um trabalho de construção compartilhada com comunidades quilombolas. A atuação tem sido voltada para o fortalecimento do protagonismo local, sobretudo das mulheres, que ocupam posição central nesses territórios. As ações se estruturam em diferentes frentes, que vão desde o resgate histórico-cultural e a valorização dos saberes tradicionais até a produção acadêmica e a geração de renda, sempre em diálogo com as necessidades e prioridades apontadas pelas próprias comunidades.
Um marco importante para as comunidades quilombolas da região foi o lançamento do Protocolo de Consulta e Consentimento Livre e Esclarecido, em julho de 2025. O documento simboliza uma ferramenta fundamental de proteção e reconhecimento de direitos, garantindo que pesquisas e intervenções respeitem a autonomia dos territórios. O evento de lançamento contou com a presença de instituições como Ministério Público Estadual, Incra e Coquivale e te ainda manifestações culturais locais. Em gesto simbólico, o protocolo foi entregue da pessoa mais velha à criança mais nova do quilombo, reforçando a ideia de que se trata de um legado para as futuras gerações.
Outra ação desenvolvida foi o mapeamento e registro das práticas de cuidado e dos conhecimentos tradicionais relacionados à saúde, mostrando a riqueza desses saberes, bem como os desafios impostos pelo racismo e pela desigualdade de gênero, especialmente na luta pelo acesso à água.

Outro destaque é a melhoria do saneamento básico por meio de tecnologias sustentáveis e ecológicas, como a instalação de banheiros secos e fossas TEvap no Quilombo do Córrego do Rocha. O sistema, que reaproveita águas limpas para irrigação, foi implementado com o apoio de técnicos e arquitetos parceiros, em diálogo direto com a comunidade.
A saúde mental também é uma frente de trabalho relevante. Com as oficinas “Corpo-Território”, voltadas para mulheres quilombolas, o projeto busca compreender o corpo como expressão da terra e o território como parte inseparável do bem viver. “Essas atividades permitem discutir e elaborar, de forma coletiva, aspectos do sofrimento e do cuidado que muitas vezes não são verbalizados, mas que fazem parte da experiência de vida e da saúde nos quilombos”, explica Flora. Em paralelo, também são promovidos ateliês de geração de renda, articulando bem-estar, autonomia econômica e sustentabilidade.

O grupo também tem atuado no fortalecimento da organização comunitária. No Córrego do Narciso do Meio, por exemplo, foram promovidas oficinas sobre associativismo e direitos quilombolas, contribuindo para a consolidação da associação local. As ações também dialogam com a arte e a comunicação, com a realização de sessão de cinema no Quilombo do Córrego do Narciso.
Além disso, iniciativas de divulgação científica têm buscado ampliar o alcance dessas experiências. Um exemplo é a publicação do Caderno Tecnologias da Saúde e do Afeto, desenvolvido em conjunto com as comunidades, que reúne práticas de cura e narrativas quilombolas, funcionando como inventário e salvaguarda desse patrimônio cultural. Também foi gravado um episódio especial do Podcast Mundaréu, do Labjor/Unicamp, no qual jovens quilombolas participaram ativamente, aprendendo técnicas de audiovisual e entrevistando anciões de sua comunidade. Dessa forma, o projeto não apenas valoriza os saberes quilombolas, como também fomenta o protagonismo das novas gerações.
Os trabalhos foram realizados por meio de recursos provenientes de emenda parlamentar do mandato da deputada federal Dandara Tonantzin (PT), destinados ao projeto Tecnologias Sociais sustentáveis para o bem viver em territórios tradicionais: gênero, saúde mental e protagonismo quilombola e também da Rede PMA Diversidades – Fiocruz, concedidos ao projeto Promoção da saúde das comunidades tradicionais quilombolas: saúde para o bem viver em Minas Gerais. Ambos os projetos são coordenados pela pesquisadora Denise Pimenta.